sábado, 11 de junho de 2011

O claro enigma de Joaõ Gilberto

Walter Garcia



O trabalho de João Gilberto exige atenção. Seu jogo sonoro não se estrutura pela oposição dos elementos, ele se constrói por tensões em nuança. Se o ouvinte está desatento, tudo parece semelhante. Se permanece atento, sente que há o máximo contraste entre coisas mais ou menos similares.

Os discos e as apresentações de João sugerem uma sequência de quadros do tipo "branco sobre branco". Que paisagem resulta desse conjunto que é feito de equilíbrios difíceis de alcançar?

Sabe-se que João Gilberto criou a sua batida de violão estilizando a batida do samba. Resumindo ao extremo as coisas, o polegar de sua mão direita esfria uma virtual marcação de surdo. O polegar bate tal qual um metrônomo. Talvez seja herança da marcação de contrabaixo que já se ouvia no samba-canção. Talvez seja herança do walking bass do jazz, mas com só uma nota por tempo.

Seja como for, enquanto o polegar toca o bordão, os dedos indicador, médio e anelar percutem o acorde. E percutem variando uma figura rítmica: João simplificou o ritmo do tamborim, fixando-lhe três ataques, e criou a base do seu próprio ritmo.

Mas ao variar esta base, o seu violão reencontra o ritmo do tamborim. A sua batida parte do samba para voltar ao samba. É samba e não é. Lembra alguns versos dos jagunços de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa: "Olelerê, baiana.../ eu ia e não vou mais:/ eu faço/ que vou/ lá dentro, oh baiana!/ e volto do meio pra trás...".

Jogando com o violão, a sua voz passeia livre. Voz e violão nem sempre fazem o mesmo ritmo. Vão-se driblando, e as notas se complementam harmonicamente. O balanço não chama à dança, porém convida à contemplação do movimento. Assim como a sua voz não expressa, porém observa sentimentos que reverberam concentrados. O lirismo é intenso e, desde 1958, bastante melancólico.

Se João Gilberto canta um Brasil moderno e paradisíaco, como tantas vezes se afirmou, que paraíso é esse que se canta com melancolia? O que é que a sua obra lamenta na modernidade, embora sem lamúria? E qual esperança carrega, embora sem efusão?

Um claro enigma. O trabalho de João Gilberto, "branco sobre branco", exige atenção.

Walter Garcia é músico e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e autor de "Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto" (Paz e Terra, 1999)

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