domingo, 23 de dezembro de 2012

O mercado de livros e a vinda dos estrangeiros


Folha.com
A retrospectiva do mercado editorial brasileiro no ano de 2012 revela um dos períodos mais movimentados de sua história, repleto daquilo que os balanços empresariais chamam de "fatos relevantes": entrada de "players" internacionais, transição da administração de perfil familiar para a gestão corporativa, "mega-sellers" que, sozinhos, faturam tanto quanto editoras respeitáveis, uma interminável dança das cadeiras num meio em que a estabilidade sempre foi moeda forte.

Curiosamente, as tentativas de interpretação dessas notícias só reforçam o quadro geral de incerteza e despertam os inevitáveis exercícios de futurologia. Mas talvez não seja no futuro, e sim no presente do mercado brasileiro, que se escondam os paradoxos comerciais e culturais que serão determinantes para a forma como o novo modelo de negócios vai se firmar por aqui.

A aquisição de 45% da Companhia das Letras pela Penguin, em dezembro de 2011, já foi em si um fato relevante, por quebrar um tabu --até aquele momento, com exceção da compra de 75% da Objetiva pela espanhola Santillana (2005), os grupos estrangeiros não haviam conseguido abocanhar editoras já existentes, optando por inaugurar novas casas do zero, como fizeram a espanhola Planeta (2003) e as portuguesas Leya (2009) e Babel (2011).

Com a fusão da Penguin com a Random House --os dois maiores grupos de língua inglesa--, em outubro, a mais prestigiosa editora brasileira foi levada para o coração da disputa travada entre os grandes grupos internacionais. A fusão foi largamente motivada, segundo disse à Folha Edward Nawotka, do site Publishing Perspectives, pelo desejo de consolidar os interesses dos dois conglomerados na América Latina, China e Índia. Já forte no mercado hispânico, com a fusão a Random House conquistou o quinhão que lhe faltava no continente.

O que não significa que a movimentação esteja consolidada. Segundo o jornal "Valor Econômico" publicou na semana passada, a Random House estaria prestes a arrematar o selo literário da Santillana no Brasil, a Objetiva. Rumores no mercado internacional apontam ainda fortes possibilidades de fusão entre Planeta e Santillana em 2013, criando um novo gigante global --e já com forte presença no Brasil.

 Para completar, Amazon e Apple, responsáveis pela disputa comercial que vem quebrando editoras e livrarias nos países ricos, passaram a vender e-books no Brasil. Embora os números ainda sejam ínfimos, eles tendem a crescer, e as editoras apostam na adesão dos brasileiros ao livro eletrônico.

Segundo o publisher da Companhia das Letras, Otavio Marques da Costa, 31, foi fixado um corte para a migração digital: todo livro que venda mais de 500 exemplares por ano (cerca de dois por dia útil) será digitalizado. Turbinada pelo know-how digital da Penguin, a editora se vê no dilema de enxugar o catálogo para ganhar agilidade na outra ponta.

O cenário geral, portanto, é de poucos e robustos "players" --editoras e livrarias-- trazendo práticas agressivas a um mercado ainda frágil, mas potencialmente rentável, sobretudo num contexto de crise mundial. Saem de cena o editor romântico, que gastou heranças familiares e empenho pessoal para montar editoras charmosas e com peso cultural, e o livreiro apaixonado e vocacionado, mas sem cacife para brigar por descontos.

Entre os que ganham força, estão os editores de perfil executivo, que mantêm um olho no "mega-seller" que ainda não foi escrito e outro no marketing, com baixo envolvimento com o texto. O e-book ainda põe em cena especialistas em desenvolvimento tecnológico, que até agora tinham pouco ou nenhum peso no metiê e já ombreiam, em salário e status, com os editores "de texto".
A figura do agente literário se fortalece como nunca --é praticamente impossível trabalhar com autores de língua inglesa sem passar por figuras poderosas como Andrew Wylie. Com escritórios em Nova York e Londres, o mais importante agente do mundo gerencia a obra de grandes autores impondo às editoras cláusulas contratuais pesadas que incluem, por exemplo, rigorosas aprovações de traduções até para idiomas periféricos como o português.

Agentes brasileiros também têm conseguido realizar negociações pesadas para renovar contratos de autores clássicos, historicamente ligados às editoras que os publicavam em vida. Num contexto de dependência das compras de governo, deter as obras completas de poetas e prosadores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado torna-se mais estratégico do que poderia parecer.

PUBERDADE

O quadro geral lembra aquele momento em que um garoto repentinamente chega à puberdade, espicha e perde a cara de criança, mas ainda não se aclimatou entre os adultos. Como se, em poucos lances, um mercado singular e fechado sobre si mesmo reproduzisse em escala local a guerra editorial que se dá no mundo rico, cujo resultado principal é a concentração feroz de editoras e livrarias.

O novo cenário contrasta em tudo com os dois maiores grupos editoriais do país, os cariocas Record e Ediouro --aqui estamos sempre falando do setor de obras gerais (que exclui religiosos, técnicos e didáticos e autoajuda)--, os quais ainda funcionam sob as regras de um mercado pré-púbere. Ambos ainda parecem ancorados no século 20, com enormes parques gráficos, aquisição (e, em alguns casos, canibalização) de selos que marcaram época e uma superprodução que desorienta leitores, livreiros, jornalistas e a própria equipe. Essas editoras também são marcadas por mastodônticos fundos de catálogo (a massa de livros já publicados, que são reimpressos constantemente), que geram receita para viver com folga mesmo sem conseguir emplacar um "mega-seller" atrás do outro, mas também trazem pesadas despesas de estocagem, seguros e logística.
Florescente e disputado, o mercado brasileiro ainda padece de fragilidades que podem pôr à prova a consolidação do novo modelo negócios no país. Entre elas, estão a estagnação (ou, conforme o cálculo, até mesmo queda) do varejo, a carência de números confiáveis, a superprodução e a dependência crescente das compras de governo.
A galinha dos ovos de ouro não é arrematar o inédito de James Joyce ou o novo romance do lisboeta bacana que causou sensação em Paraty, mas sobretudo as compras de governo. Impulsionadas no governo FHC (1995-2002) e mantidas nas gestões petistas, as compras torrenciais em todos os níveis de governo são o que garante, hoje, que as contas fechem na quase totalidade das editoras.

Há editoras que chegam a prescindir do mercado, produzindo apenas bonecos (protótipos, no jargão editorial) para entrar em licitações altamente rentáveis, sem o ônus de pôr o livro nas livrarias. Editoras maiores, como a Global, claramente não priorizam o varejo e focam o trabalho com seus grandes autores, como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, praticamente só nas vendas para governos.

Segundo pesquisa da Fipe, a melhor fonte num mercado em que os números carecem de confiabilidade, as vendas do setor de obras gerais no varejo tiveram crescimento irrisório: passaram de R$ 882 milhões em 2005 para R$ 903 milhões em 2011 (preços correntes, ou seja, sem descontar a inflação). No mesmo período, as compras governamentais (todos os setores) saltaram de R$ 500 milhões para R$ 1,4 bilhão.

Fontes do mercado alertam que as compras do governo são erráticas e que esse tipo de comparação pode embutir distorções. De todo modo, descontando a inflação, um cálculo conservador aponta um tombo no varejo da ordem de 23% entre 2005 e 2011, enquanto as vendas governamentais cresceram 130%.

As compras governamentais ainda podem ser um aliado estratégico na migração para o digital. Além de atender à indústria eletrônica, sequiosa por renúncias fiscais e licitações, os constantes lobbies para compra de tablets e readers para alunos da rede pública podem servir também às editoras, por instalar de graça um "receptor de e-books" em cada domicílio brasileiro. Uma espécie de aríete que abrisse caminhos para que a massa consuma e-books.

O sonho não parece impossível, já que a "massa" efetivamente está consumindo livros em papel. Como já foi apontado por muitos, a queda de qualidade nas listas de mais vendidos nada mais é do que uma nova franja de leitores invadindo a praia.

A consequência negativa dessa massificação é o efeito que se observou no mercado fonográfico: o foco em poucos títulos de altíssima rentabilidade. Mais vale um Tchan! (ou um "50 Tons") do que, por exemplo, manter em catálogo a obra de um João Gilberto (ou, nos livros, de um Murilo Mendes). Como apontou Raquel Cozer na "Ilustrada" de 15/12, o modelo invejado pelos concorrentes é o da Intrínseca de Jorge Oakim, que trabalha com um catálogo curto e de alto giro e é uma espécie de antípoda das casas cada vez mais dependentes do governo.

Nessa concepção, que não é exclusiva da Intrínseca, poucos títulos são vendidos com descontos polpudos a um número cada vez menor de livreiros, que ganham o poder de oferecer na boca do caixa até 20% no preço de capa de lançamentos, esmagando os já minguados nanicos. Fontes do mercado especulam que só "Ágape" (Globo), do padre Marcelo Rossi, possa ter faturado sozinho algo como 30% do faturamento de varejo de uma editora de porte como a Companhia das Letras.

Entre mortos e feridos, as feições do ofício de editor mudam tanto que paradoxalmente acabam por abrir espaço para que o modelo "antigo", que envolve editores e leitores com desejo lúbrico pela palavra impressa, volte à tona em nova chave.

Mal comparando, é mais ou menos como a reação gastronômica à industrialização excessiva na produção de alimentos, passando a valorizar ingredientes locais, as receitas da vovó e a tradição artesanal.

Bernardo Ajzenberg, diretor da Cosac Naify, afirma que a editora vê nesse novo cenário uma oportunidade para se afirmar como casa de prestígio, voltada ao papel. A editora tem "dezenas" de e-books prontos, mas ainda não começou a comercializá-los: Ajzenberg afirma que pretende esperar a consolidação do novo modelo de negócios enquanto busca crescer no "velho" modelo de negócios.

"O advento do digital torna ainda maior o desafio do livro impresso, e esse desafio a gente compra", disse ele à Folha. "Abre caminhos e novas possibilidades para o impresso que ainda não foram explorados."

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