James Joyce passou a vida em busca de epifanias. Não a manifestação divina, mas pequenas ou grandiosas iluminações que, ele acreditava, escondiam-se sob os fatos e seriam capazes de arrancá-lo do presente repleto de mesmice e angústia --luta, em grande parte decepcionante, para libertar-se da Irlanda, das influências e lembranças familiares, do catolicismo e de sua própria fragilidade.
Herdada do cristianismo, essa tentativa de compreender a realidade a partir de uma perspectiva transcendental refuta as interpretações comuns do tempo.
Para Joyce, a história não pode ser um contínuo corruptível, com começo, meio e fim, mas, como dizia Gregório de Nissa, deve ir "de começos em começos por começos que não têm mais fim". Ou, nas palavras de Agostinho de Hipona, em suas "Confissões", "não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras".
Os motivos do escritor irlandês, contudo, não eram religiosos ou teológicos; ele não estava preocupado em sublimar a imanência ou distinguir, de forma profética, o destino do homem e do mundo.
O que Joyce transformou em técnica literária, o registro do que ele acreditava serem revelações nasce do desespero para perpetuar o presente, do temor de que tudo lhe escape a cada instante. Ele tenta reter a essência dos fatos --para que o tempo não passe, não se desdobre. Como afirma Harry Levin no clássico "James Joyce: A Critical Introduction" (1941), "o afã de toda a vida de Joyce foi escapar do pesadelo da história, conceber a totalidade das experiências humanas num plano simultâneo, sincronizar passado, presente e futuro".
Dois lançamentos da editora Iluminuras mostram aspectos do desespero joyciano: se "Epifanias" [intro. e trad. Piero Eyben, 112 págs., R$ 35] apresenta alguns dos resultados que o autor alcançou na tentativa de revelar mistérios para os quais a maioria dos homens está cega, em "Cartas a Nora" [org. e trad. Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, 152 págs., R$ 38], correspondência enviada a sua mulher, Nora Barnacle (1884-1951), conhecemos a aflição no seu estado mais cru, livre das regras que o autor se impunha ao escrever literatura.
DESIGUAL
"Epifanias" é um livro desigual, provoca reações opostas. Para o editor e crítico literário John Gross, esses pequenos textos são "obstinadamente exânimes", "carentes de drama", "amorfos e insubstanciais". Na opinião de Harry Levin, podem ser lidos "como exemplos de um gênero único e delicado, manifestações concretas da quidditas[essência] escolástica ou do porquê das coisas". Ambos estão certos, a depender do trecho.
O leitor que enfrenta a primeira epifania pensará como Gross. Trata-se de um diálogo que só adquire sentido ao ser redescoberto no início de "Retrato do Artista Quando Jovem". Mas, se não empreendemos esse exercício detetivesco ou não procuramos o auxílio de um guia seguro, as poucas linhas transformam-se numa cena desprovida de sentido --e podem despertar a culpa no leitor inexperiente, que se perguntará por que não percebe a singularidade de um texto do autor de "Ulysses".
Não há erro nenhum, no entanto, pois esses fragmentos são apenas exercícios de estilo, excertos de diálogos, rápidas cenas urbanas, visões do mundo onírico, amostras do que ele desenvolveria nos contos e romances.
As epifanias mostram a distância que há, quando se dispõe apenas de palavras, entre pretender desvelar um episódio fortuito e atingir realmente o objetivo, a ponto de produzir algo semelhante a um arrebatamento. Convidam o leitor a se manter equidistante da veneração e do menosprezo; só assim não se comportará como alguns obsessivos estudiosos, que poderiam descobrir literariedade até numa lista de compras, se encontrassem uma escrita por Joyce.
Mas há passagens extraordinárias, como a "Epifania 33", na qual a primeira impressão, fotográfica, prolonga-se num quadro noturno povoado de prostitutas melancólicas e carentes. Ele a utilizará anos mais tarde, no "Ulysses", mas antes transcreve o trecho, com variações, numa carta pungente que envia a Nora, em 29 de agosto de 1904. Só após lermos tal peça autobiográfica começamos a entender esse homem dilacerado pelo remorso e pelo anseio de ser famoso.
É curioso que, num espaço de três décadas, esta seja a segunda edição brasileira das cartas de Joyce a Nora --a primeira, de 1982, foi lançada por Massao Ohno e Roswitha Kempf, com tradução de Mary Pedrosa. Nossos editores parecem dar preferência às confissões íntimas do escritor, desprezando, na ampla epistolografia que deixou, as cartas, por exemplo, ao poeta Ezra Pound (1885-1972) ou a Sylvia Beach (1887-1962), sua benfeitora, que editou o "Ulysses" em 1922.
ÊXTASE
De qualquer forma, a correspondência revela muito mais que o escritor fetichista. Nora não foi apenas a epifania carnal de Joyce; veja-se, em 21 de agosto de 1909, a descrição próxima a um êxtase místico: "Teu amor me atravessou e agora sinto que a minha alma é algo assim como uma opala, isto é, cheia de matizes e de cores estranhamente variáveis".
Antes, tornou-se, para o escritor apóstata, a substituta profana da Virgem Maria: "Minha mãezinha, me ponha no escuro santuário do teu útero. Proteja-me, querida, do mal! Sou muito criançola e impulsivo para viver só. Me ajude, querida, ore por mim!" (24 de dezembro de 1909). Esse trecho e outros, repletos de lamentos tediosos de menino inseguro e desprotegido, não passam de degradações, na forma e no conteúdo, das epifanias 7 e 34, nas quais brilha o tema do amor maternal.
À parte os clichês melosos e as súplicas infantis, o desespero de Joyce se irradia por todas as direções. Exige que Nora recorde os locais onde se encontraram e, segundo ele, foram felizes. Ela passa cinco dias sem lhe enviar uma carta, e ele a acusa de ter esquecido "os belos dias do nosso amor". Reconhece que tal cobrança é algo monstruoso --mas volta a fazê-la na mesma carta (12 de julho de 1912). Quando está em Dublin, visita repetidamente esses lugares, incluindo os que ela habitou; e sua desesperadora insistência em recordar está longe do sereno "presente respeitante às coisas passadas" de Agostinho: "Vejo-te... vejo-te... vejo-te...", repisa ele a 25 de outubro de 1909, buscando epifanias que façam renascer o passado tirânico.
Há igual sentimento em relação ao futuro. Reconhece que as "ambições desmedidas" são as "forças dominantes" de sua vida (27 de outubro de 1909) e a promessa de alcançar a fama, o sonho de Stephen Dedalus, seu alter ego, de um tempo ulterior em que suas epifanias serão enviadas a "todas as grandes bibliotecas do mundo, incluindo a de Alexandria" (em "Ulysses"), ecoa pelas cartas.
Nada muda quando se trata do "presente respeitante às coisas presentes". O Joyce perfeccionista, capaz de ordenar detalhes no vestuário de Nora, é o mesmo que visitava amigos para anotar trechos de seus diálogos e apreender, nas conversas banais, o indício de algo único, revelador. Ele reconhece, a 22 de agosto de 1912, sua compulsão: após perguntas e recomendações que descem a detalhes da higiene pessoal de Nora, exclama, referindo-se a si mesmo, num paroxismo, "Pobre Jim! Sempre planejando e planejando!".
A realidade se encarregou de atormentar o autor de "Finnegans Wake" com antiepifanias. E, apesar do permanente remordimento da consciência --o "agenbite of inwit" que ele inocula em Dedalus e Leopold Bloom, de "Ulysses"--, Joyce conseguiu extrair beleza do desespero. Os "cascos que brilham no meio da pesada noite como diamantes, apressando-se para além do gris" ("Epifania 27") ou os olhos de Nora, "flores silvestres azuis crescendo em alguma sebe emaranhada e molhada de chuva", na carta escrita a 19 de novembro de 1909, são comoventes.
Mas a "besta ártica", que o escritor fustiga com a bengala na "Epifania 16", avulta de forma perturbadora: ela é o próprio James Joyce, contorcendo-se sobre si mesmo e murmurando palavras numa língua incompreensível.
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