sábado, 26 de março de 2022

Após vencer dois cânceres, estudante é a primeira da família a ingressar em universidade federal


                                             © WERTHER SANTANA / ESTADÃO

Estadão


 


 Desde os dois anos de idade, Maria Antônia Lourenço Mota de Souza, de 18 anos, vive entre Cuiabá, cidade natal, em Mato Grosso, e a capital paulista. Durante o período, curou-se de dois cânceres e hoje trata o lúpus eritematoso sistêmico. Nada disso impediu que ela se tornasse, em 2022, a primeira da família a entrar em uma universidade federal, a UFMT. Maria Antônia foi aprovada em Administração pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu).


“Achei que era mentira”, conta a jovem sobre o momento em que viu o nome na lista de aprovados. Ela disse que se surpreendeu pois fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) apenas uma vez, em 2021. A comemoração dela e da mãe, Mariene, de 44 anos, se deu em meio a lágrimas de alegria. “O mérito é todo dela. Mas, para mim, também foi uma vitória, porque eu não deixei ela cair”, fala a mãe.



O périplo constante das duas começou em 2005. Aos 2 anos, Maria Antônia foi diagnosticada com um câncer raro, um tumor rabdomiossarcoma vaginal botrióide. “Me falaram: ‘Você tem de ir para São Paulo para ontem, porque aqui não tem tratamento. Você tem de correr, porque esse tipo de tumor é raro e agressivo’”, lembra Mariene.


Grávida da filha mais nova, Mariana, hoje com 16 anos, Mariene deixou o filho mais velho, Gabriel, agora com 23 anos, e o marido, Fúlvio, em Cuiabá, e veio à capital paulista com a filha do meio. “Eu caí de paraquedas em São Paulo. É uma cidade grande, onde eu não conhecia nada.”


Com tratamento precoce e ágil, Maria Antônia curou-se do câncer. Mas continuou vindo a São Paulo para avaliações de seu estado de saúde. Em 2010, ela teve uma recidiva do tumor. Dessa vez, conta a mãe, o câncer se alastrou para a bexiga e o útero. A jovem teve inclusive de fazer uma ostomia (cirurgia que faz abertura para saída de fezes ou urina e auxiliar na respiração e alimentação). Por ser ostomizada, ela passou a ser considerada pessoa com deficiência.


Em 2016, Maria Antônia foi diagnosticada com lúpus eritematoso sistêmico. Essa doença autoimune não tem cura, mas tem tratamento para reduzir crises e melhorar a qualidade de vida do doente. Depois, a jovem já teve duas síndromes de ativação macrofágica (complicação do lúpus caracterizada pela ativação excessiva dos macrófagos e histiócitos). Uma delas, em 2018, atingiu seu cerebelo e lhe causou até problemas de memória.


Seja nos hospitais em que ficou internada ou em lares de apoio, como a Casa Ninho, que abriga mãe e filha em São Paulo desde 2008, Maria Antônia nunca deixou os estudos de lado. Sempre esteve matriculada nas escolas públicas de MT e, em São Paulo, era atendida por professoras de classe hospitalar.


Mariene conta que nunca deixou Maria Antônia entregar os pontos, mesmo quando sentia dores ou cansaço. “Não é porque está doente que pode desistir”, fala a mãe. “Eu agradeço muito a ela por isso”, destaca a filha.


Por ter deficiência e estar em tratamento, Maria Antônia tinha direito a fazer exames excepcionais, mas sempre optou por fazer os regulares. “Ficou conhecida na escola por isso”, diz a mãe, orgulhosa.


Maria Antônia também credita a conquista a Joseane Terto de Souza Uema, de 38 anos, professora de classe hospitalar da Casa Ninho, que atendeu às dúvidas da estudante dentro ou fora de horário, presencialmente ou a distância, por mensagens ou ligação.


“(A aprovação) dá a ela e a outras crianças que atendemos uma perspectiva de sonhar e ter futuro, que é o meu grande objetivo com elas”, diz Joseane. “A missão da classe hospitalar é mostrar para eles que a doença é apenas uma etapa”, resume.


Disso, a educadora entende bem. Quando estava no 3.º ano do ensino médio, ela enfrentou um câncer de tireoide. Hoje, é formada em Letras e Pedagogia, tem especialização em Psicopedagogia e mestrado em Psicologia da Educação. “Fiquei quase todo o ano afastada”, conta Joseane, que só não repetiu a série porque uma colega lhe trazia todas as tarefas. Daí nasceu o sonho de trabalhar com crianças e adolescentes com necessidades educacionais especiais.


Agora, ela usa a história dela para ajudar. “Ter essa identificação ajuda muito a conversar com eles, ter essa sintonia com o que sentem física e mentalmente”, afirma.


As aulas de Maria Antônia começam em abril, porém, é só o início de uma longa jornada, assegura Mariene. “O futuro dela é brilhante, só tem de correr atrás.”

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