segunda-feira, 11 de junho de 2018

Com Salah, Egito agita atribulada e muçulmana república da Tchetchênia

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FolhaPress



O relógio marcava 55 minutos de treino, e os gritos de “Salah” e “Mo Salah, rei do Egito” já escasseavam quando uma guarda pretoriana de homens barbudos em ternos escuros surgiu no portão lateral do estádio Akhmat, em Grozni.

Eles abriram passagem para o novo “rei da Tchetchênia”, Mohamed Salah, e para o regente de fato da atribulada república no sul da Rússia, Ramzan Kadirov.

O maior jogador da história egípcia e único superstar muçulmano do futebol atual não treinou, contudo, no primeiro dia na base da seleção de seu país para a Copa.

Apesar de o zagueiro Ali Gabr ter dito à Folha no aeroporto de Groznique ele “está bem e vai jogar” a estreia do Egito contra o Uruguai na sexta (15), o meia-atacante foi poupado.

O “rei do Egito”, como é chamado no grito da torcida de seu Liverpool (ING), está fora de combate desde que levou uma chave de braço e lesionou o ombro, na final da Liga dos Campeões em que o Real Madrid (ESP) derrotou os ingleses por 3 a 1.

Kadirov, por sua vez, ficou mais tempo em campo do que Salah. O autocrata de 41 anos, que comanda a Tchetchênia desde que tinha 31, é um notório fã de futebol.

Sua tacada de trazer o Egito de Salah para ficar em Grozni, supostamente com apoio de xeques do Golfo Pérsico, só é ofuscada pelo lado obscuro do seu regime.

Para o diretor jurídico da ONG Memorial, Kiril Koroteev, o Egito está copatrocinando violadores de direitos humanos ao aceitar a hospedagem “padrão faraó” ofertada, para ficar no apelido do time árabe.

A Memorial foi responsável por denúncias de repressão e prisão de homossexuais na Tchetchênia, e foi perseguida por isso.

“É uma vergonha”, resume o ativista. O governo e a Federação Egípcia de Futebol minimizam as acusações.

Enquanto isso, se em Moscou e outras sedes o Mundial é quase invisível, os tchetchenos ressuscitaram o bordão “Vai ter Copa”.

Há bandeiras do Egito, da Tchetchênia e da Rússia, além de banners da Fifa, por todo lado.

Mesmo sendo um letárgico domingo véspera de feriado e perto do fim do Ramadã, mês em que muçulmanos jejuam e se abstêm de sexo e fumo enquanto há luz solar, cerca de 8.000 pessoas foram ao estádio não ver Salah treinar.

O clima era familiar, mas a realidade se interpunha não só com o showzinho do presidente, mas também com uma procissão de amputados –a Tchetchênia sediou duas guerras cruentas nos anos 1990.

Outros fatores concorrem para a particularidade desse capítulo da Copa-2018.

Com mão de ferro, Kadirov lidera um esforço visível de recuperação do país. Grozni deixou de ser uma ruína e é uma cidade de 270 mil habitantes decentemente manicurada.

Mas ele age de maneira algo opaca, como um conjunto de quatro arranha-céus isolados no centro da cidade, sugere.

Relatos oficiais informam que tudo foi financiado pelos Emirados Árabes Unidos para agradar o patrono de Kadirov, o presidente russo, Vladimir Putin.

Mas parece uma aplicação generosa demais de dinheiro: são prédios enormes e vazios, como o hotel cinco estrelas Grozny City e seus 32 andares.

Os edifícios ficam ao lado da mesquita Akhmat, a antiga Coração da Tchetchênia. O nome, escolhido por Kadirov, diz muito acerca de seu personalismo.

Akhmat Kadirov foi seu pai, presidente após as pazes com Moscou, morto num atentado a bomba em 2004 no estádio antecessor do local do treino deste domingo.

O Egito usou a Arena Akhmat, onde joga o time de primeira divisão FC Akhmat, patrocinado pela Fundação Akhmat.

Akhmat é onipresente. Nomeia avenidas (Putin tem a sua também), shoppings, ginásios do esporte nacional, a luta greco-romana.

O time local, que tem quatro brasileiros e está em férias, é adição recente, de 2017. Sua arena, de 2011, tem duas fotos enormes na fachada, do pai e de Putin.

Em uma amostragem não científica na rua, a sensação é de aprovação com ressalvas do autocrata.

Isso pode ter a ver não só com a brutalidade associada ao regime, mas também com a memória coletiva em relação a Moscou, de quem Kadirov é cliente.

Dois séculos de domínio russo explodiram com o fim da União Soviética, em 1991. Até 1994, tchetchenos e seus vizinhos da Inguchétia e do Daguestão permaneceram mais ou menos autônomos.

Foi quando o presidente Boris Ieltsin determinou uma campanha militar que destruiu o país, alimentou terroristas islâmicos e acabou com humilhação russa em 1996.

Em 1999, o então premiê Putin lançou a segunda guerra na região, após atentados atribuídos a tchetchenos. Obteve vitória e pavimentou sua consolidação como presidente em 2000.

[Soldados russos mantêm prisioneiros tchetchênios em trincheira durante segunda guerra na região]
Soldados russos mantêm prisioneiros tchetchênios em trincheira durante segunda guerra na região - Nikolay Galiayev - 8.fev.2000/Reuters

​Kadirov, o pai, aliou-se então ao Kremlin. O filho ganhou poder e virou presidente indicado por Putin em 2007.

“Todos nós perdemos alguém na guerra. Agora pode ter coisas ruins, mas você devia ver isso aqui antes”, diz o motorista de táxi Umar Dubailev, 60, um dos raros a aceitar se identificar à reportagem.

Foram entre 160 mil e 300 mil mortes de civis, nos dois conflitos. Isso numa país com hoje 1,4 milhão de habitantes, embora os dados não sejam muito confiáveis.

Já um Kadirov forte é útil a Putin. Ele esposa uma versão mais moderada do Islã, ele isola fundamentalistas que agem no Cáucaso. E vem atuando como um intermediário junto aos países do Golfo.

Como Putin restabeleceu a Rússia como jogadora no xadrez do Oriente Médio, ao intervir na Síria em 2015, quanto mais pontes com atores regionais, melhor.

Para Kadirov, a presença de Salah como seu convidado é também uma vitória de seus gostos.

Em 2011, trouxe remanescentes do Brasil pentacampeão de 2002 para um jogo no qual ele era o capitão adversário. Ao estilo de outro ditador, o ugandense Idi Amin nos anos 1970, perdeu a partida, mas marcou dois gols em pênaltis duvidosos.

Há ponderações. “Fica bem para a Rússia. Salah é um herói muçulmano. De quebra, se inspirar mais crianças ao esporte e menos ao terrorismo, já terá valido a pena”, diz o empresário Mikhail Ubaidulaev, 48, que é do vizinho Daguestão e mantém uma escola de futebol a 80 km de Grozni.

TCHETCHÊNIA

República russa de maioria muçulmana, a Tchetchênia foi palco de duas guerras devastadoras na década de 1990, que mataram entre 160 mil e 300 mil pessoas

CRONOLOGIA

Século 18 – A Rússia imperial começou uma série de guerras para dominar o Cáucaso, então sob influência da Pérsia

1917 – Com a Revolução Russa, os territórios da Tchetchênia, Inguchétia e Daguestão se uniram num Estado independente

1921 – Os bolcheviques anexaram o território à União Soviética, e a Tchetchênia virou parte da República Socialista Soviética Autônoma Tchetcheno-Inguch

1944 – Quase 60% da população foi morta após deportação em massa por Stálin, que acusava os moradores de apoiar os nazistas. Só voltaram para casa em 1956

1991 – Com o fim da União Soviética, um governo independente na Tchetchênia foi formado, contra a vontade de Moscou

1994-96 – A Rússia tentou recuperar o controle político da república à força, levando a uma guerra que terminou com um humilhante armistício para Moscou

1996-99 – O governo autônomo buscou laços econômicos com a Rússia, e aumentou a insurgência islâmica no Cáucaso

1999 – Após uma série de atentados na Rússia, o então premiê Vladimir Putin lançou uma segunda guerra na Tchetchênia, subjugando o governo. Em 2000, Grozni foi retomada


2000-2007 – Período de grande turbulência e violência por parte de grupos rivais. Em 2004, o presidente Akhmat Kadirov foi assassinado, e seu filho Ramzan comanda o país desde então, como um aliado vital do Kremlin

2010-2018 – Com mão de ferro, Kadirov se estabeleceu na região e virou importante contato de Putin com países do Golfo, que investiram pesadamente na reconstrução do país

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