domingo, 15 de junho de 2014

Filha de Guimarães Rosa mostra com orgulho que herdou atributos do escritor



POR LUDMILLA DE LIMA/O Globo                Foto  Agência:Globo/Daniela Hallack Dacorso

A escritora Vilma Guimarães Rosa aprendeu ainda criança a brincar com as palavras. Seu primeiro livro, lançado em 1967, se chamava “Acontecências”. Na época, o pai, João Guimarães Rosa, chegou a pedir à filha que mudasse o nome porque a crítica poderia achar que ele inventara o título, conhecido que era pelos neologismos. Mas Vilma bateu o pé e, mais de 15 anos depois, enveredou pelo mesmo caminho e publicou “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”. Outra herança que o pai deixou para Vilma, ou Vilminha, como carinhosamente era tratada pelo autor de “Grande sertão: veredas", foi a superstição. Em dias de lançamento e viagens, ela não sai de casa para fazer nada antes do compromisso, com medo de que algo “desagradável” aconteça. “Viver é muito perigoso”, diz, repetindo as palavras do pai. Ou do João Papai.

Aos 83 anos, Vilma mostra com verdadeiro orgulho que herdou atributos da personalidade de Guimarães Rosa. E lembra, com um sorriso de orelha a orelha, que foi chamada de “jovem colega” por Guimarães Rosa, na carta que ele lhe enviou na noite de autógrafos de “Acontecências”, no Iate Clube, na Urca.

SEMANA COM FIM TRÁGICO

Vilma impressiona ao recordar diálogos inteiros com o pai. Ela conta que, no Colégio Sion, já era reconhecida pelos coleguinhas como escritora. E repete uma conversa de quando o pai lançou “Sagarana”, em 1946:

— Eu disse: papai, o senhor também é escritor. E ele: puxei a você.

O lançamento de “Acontecências” fazia parte da “Semana Rosiana”. O evento foi numa segunda-feira. Na quinta seguinte, depois de adiar a posse na Academia Brasileira de Letras (ABL) por quatro anos (suspeita-se que por superstição), Guimarães vestia, finalmente, o fardão verde-escuro dos imortais, com folhas bordadas em fios de ouro. Três dias depois, em 19 de novembro de 1967, ele morreria, fechando de forma trágica a semana.

Essa e outras lembranças Vilma revive em “Relembramentos”, lançado pela primeira vez em 1983, e que este ano ganha uma nova edição da Nova Fronteira. De novidade, a obra ganhou uma parte dedicada à cidade de Itaguara, em Minas Gerais, onde Vilma nasceu e para onde Guimarães Rosa, que era médico, foi com a sua primeira mulher, Lygia, assim que se formou. Nesse adendo, ela tenta provar a influência dos dois anos passados em Itaguara na produção literária do pai, embora seu primeiro livro (“Sagarana”) tenha saído do prelo mais de dez anos depois. Para isso, ela cita personagens e histórias dos livros de Rosa que teriam sido inspirados em pessoas e fatos dali.

Embora seja um livro de memórias, é um dos únicos trabalhos que hoje levam os leitores ao mundo particular do escritor. Nos últimos anos, mais do que pela sua produção literária (que inclui oito livros de contos), Vilma, ao lado da irmã, Agnes, ganhou fama por se meter em controvérsias. Um dos casos mais notórios envolve “Sinfonia Minas Gerais” (LGE Editora), uma biografia do pai, escrita pelo advogado Alaor Barbosa. Em 2008, ano do centenário do escritor, ela acabou retirada do mercado depois que Vilma e a Nova Fronteira foram à Justiça acusando a obra de plagiar “Relembramentos”. No ano passado, uma reviravolta: a 24ª Vara Cível do Rio liberou o livro. Em maio, a Justiça de Goiás condenou a escritora a pagar R$ 30 mil a Alaor num processo de difamação.

SÓ COM AUTORIZAÇÃO

Vilma diz que essa briga já foi superada. Mas é taxativa: o melhor modo de se escrever sobre Guimarães Rosa é conversando com ela antes. O espólio é dividido entre as duas e os herdeiros de Aracy, segunda mulher do escritor, que ficou ainda com os direitos de “Grande sertão".

— Nada poderá competir com o meu livro, que são relembramentos de uma filha, que foi secretária desse grande autor — diz Vilma, afirmando que está escrevendo sua própria biografia (“antes que alguém me chateie”) e que o pai não queria ter sua vida revelada. — Para ele, biografias despem muito o biografado e verdades são deturpadas.

A professora da USP Sandra Vasconcelos, curadora do acervo de Guimarães Rosa, conta ter conversado com Vilma sobre a importância de um trabalho mais completo e distanciado.

— Todo escritor brasileiro da estatura do Guimarães merece uma biografia — diz Sandra, explicando que a obra de Rosa só cairá em domínio público em 2037. — Nenhuma biografia detém a verdade sobre a pessoa. É um retrato de uma vida. Por que a biografia que a dona Vilma fez seria superior a todas as outras? Por que ela seria a verdade? Qual é o distanciamento crítico que um filho tem do seu pai?

A professora observa que há um ressentimento de Vilma em relação ao casamento do pai com Aracy, com quem o escritor viveu até morrer. Funcionária do Itamaraty, Aracy conheceu o escritor no Consulado de Hamburgo, na Alemanha, no fim da década de 30. Aracy é reconhecida pela comunidade judaica por ter ajudado na saída de judeus da Alemanha nazista. Em “Relembramentos”, Vilma só destaca a atuação do pai e também da mãe, que teria auxiliado refugiados no Brasil.

Vilma tenta pôr uma pedra na questão, afirmando que era amiga e confidente de Aracy e que estuda publicar o “Diário de Hamburgo" (com impressões do escritor sobre o começo da Segunda Guerra, que faz citações a Aracy). Mas a filha minimiza a importância dos documentos que ela chama de “cadernetas”. Ela viveu com o pai e Aracy em Paris por três anos, quando estudou Literatura e História na Sorbonne.

CONTADORA DE HISTÓRIAS

Vilma é uma senhora elegante e falante. Moradora de Copacabana e apaixonada pelo mar, ela preserva sua mineirice: é uma contadora de histórias. A verve se soma ao colorido forte de suas roupas e acessórios, que fazem com que não passe despercebida. Já o marido, Peter Quiney Reeves, de 89 anos, paulista de pais ingleses, tem a fleuma dos súditos da rainha. Quando ele dorme, após o noticiário da TV, é a hora em que Vilma mergulha madrugada adentro nos livros de mistério. É fã de Agatha Christie.

— Estamos juntos há mais de 50 anos e viajamos o mundo inteiro, com exceção da Austrália e Nova Zelândia. Por enquanto... — interfere Peter, ex-empresário e iatista. — Acostumada a uma vida de Jockey Club, ela virou comigo uma mulher do mar.

Vilma prepara ainda seu primeiro romance e faz uma releitura de quatro dos seus livros — incluindo “Acontecências”, inspirado no mar — para este ano. Leila Name foi sua editora na Nova Fronteira e considera Vilma uma contista com vasta memória afetiva:

— Ela batalha pela obra do pai e constrói a sua carreira de modo muito autônomo. Vilma possui uma disciplina para escrever impressionante. Ela é muito ativa intelectualmente, entende que escrever é 90% suor.

Mãe de Laura Beatriz e João Emílio, do seu primeiro casamento, com Caio Antonio Bernardo, e avó de Alice e Catarina, Vilma confessa:

— Meu grande sonho é a ABL.

E não demonstra medo de ser comparada ao pai. Em sua última entrevista, Rosa declarou à revista “O Cruzeiro” que “Vilminha tem boa fabulação. Seus contos são imaginosos e são reflexos de sua intensa atividade intelectual, desde criança”.

— Ele era um gênio. Eu sou a Vilminha — diz. — Meu pai dizia que inspiração é um estado de transe. Sabe que ele tem razão?

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