sábado, 18 de novembro de 2023

Após ataques de Milei, papa vira personagem de eleição na Argentina

 




Em sua nova peça de campanha, o candidato peronista Sergio Massa faz questão de dizer que "ama o papa". Não só porque Francisco é argentino, mas também porque ele virou um personagem do segundo turno das eleições depois de ser alvo de ataques do libertário Javier Milei - o que pode ter lhe custado um eleitorado importante em um país de maioria católica. A eleição acontece neste domingo (19)


Segundo pesquisa feita em 2019 pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas (Conicet), ligado ao Ministério da Ciência, quase 63% dos argentinos se identificam como católicos - uma queda em relação a 2009, quando 76,5% se identificavam com a Igreja. Mas significa que 28 milhões ainda se importam com o papa.


Para além dos números, o fato de Francisco ter sido o primeiro papa argentino é motivo de orgulho nacional, e suas respostas sobre preferir Messi ou Maradona repercutem na sociedade. "Temos um papa que influencia, queira ou não, na política argentina", afirma Cecilia Sturla, diretora do Instituto da Família e Vida João Paulo II, da Universidade Católica de Salta. "Francisco tem um peso político na Argentina, para o bem ou para o mal."


Mesmo sabendo disso, Milei disse que o pontífice era "comunista" e "a encarnação do maligno". Um conselheiro chegou a sugerir o rompimento das relações com o Vaticano. Francisco nunca respondeu diretamente, embora tenha lançado alertas que pareciam aludir ao libertário.



"Todos já fomos jovens sem experiência e, às vezes, meninos e meninas se apegam a milagres, ao Messias, para que as coisas se resolvam de forma messiânica. O Messias é apenas um, que nos salvou de todos. Os demais são todos palhaços do messianismo", disse o papa em entrevista à agência Télam, antes do primeiro turno.


Diferentemente do Brasil, onde o voto religioso tem um peso importante nas eleições e há uma bancada religiosa no Congresso, na Argentina a Igreja não costuma se posicionar em eleições, embora historicamente tenha uma aproximação com o peronismo. No entanto, as palavras duras de Milei provocaram a reação de padres e bispos.


Resposta

Em setembro, um grupo de padres de vilas e bairros de Buenos Aires, conhecidos como "curas villeros", realizou uma missa em resposta a Milei. "Acaba-se por perguntar se alguém com esse distúrbio emocional, que não consegue encontrar alguém que pensa diferente sem gritar ou insultar, consegue suportar as tensões inerentes ao cargo a que aspira", disseram.


A alta cúpula da Igreja argentina também respondeu dizendo que não apoiava ninguém, mas expressou "princípios úteis para refletir o futuro do povo que amamos e servimos".


Considerada uma das cidades mais católicas da Argentina, Salta se tornou o maior exemplo do impacto da cruzada de Milei contra o papa. Na província de mesmo nome, no noroeste argentino, 76% da população se diz católica. Igrejas, catedrais e conventos fazem parte da paisagem saltenha, sendo a placa de boas vindas na cidade acompanhada por uma cruz.


Nas discussões sobre aborto, em 2020, todos os congressistas de Salta votaram contra a proposta, consolidando sua visão conservadora do tema.


O ápice da religiosidade de Salta é visto em setembro, quando milhares de peregrinos viajam quilômetros, muitos a pé, para festejar a Fiesta del Milagro, que celebra o milagre ocorrido no século 16, durante a fundação da cidade, quando se crê que orações à Virgem dos Milagres fez parar um terremoto. Desde então, a festa chega a reunir 800 mil pessoas.


Mesmo com todo este histórico, Milei ganhou a maioria dos votos de Salta nas primárias de agosto, sendo a província que mais havia votado no libertário, com quase 50% dos votos. Os cartazes de Milei faziam parte da paisagem da cidade quando a reportagem a visitou, em outubro.


Andrea Zintgraff, de 36 anos, votou em Milei nas primárias e no primeiro turno, porque defende uma mudança econômica na Argentina, mas admite que as falas do libertário sobre a Igreja a incomodam. "Eu discordo de algumas coisas da Igreja, como a posição sobre o aborto, por exemplo, e me preocupam os casos de padres abusadores, por isso não sou contra o que Milei diz. Mas, neste momento, estou pensando na economia", afirma.


Vista grossa

A agente administrativa representa uma grande parte do eleitorado de Milei, que decidiu fazer vista grossa ao que diz o libertário sobre o papa porque tem outras preocupações mais urgentes, como a inflação. Mas, para o consultor político Pedro Buttazzoni, parte do eleitorado foi afetado pela briga.


"Vemos isso nas pesquisas que fizemos em Salta, as pessoas sabem das propostas de dolarização, do objetivo de tirar a casta política, eliminar o Banco Central, mas não muito mais que isso. Não citam propostas de Milei muito além dessas", afirma Buttazzoni, diretor da Droit Consultores.


Mas, no primeiro turno, em outubro, o libertário viu uma queda de apoio entre os saltenhos. Ele venceu na região com 40% dos votos, mas Massa aumentou de 24%, nas primárias, para 37%. Segundo o Centro de Pesquisa para a Qualidade Democrática, Milei perdeu 3% de seu eleitorado na província, enquanto Massa cresceu 85%.


Os motivos para o salto são dois, segundo analistas. Primeiro, a ação do aparato peronista nas províncias, que em Salta foi comandada pelo próprio governador reeleito Gustavo Sáenz. E, segundo, a Igreja.


"Achávamos que o peronismo estava muito mais debilitado antes das primárias, mas nos demos conta de que não, que estava adormecido e ativou toda sua força para ressurgir, e uma das forças do peronismo é a Igreja", disse Sturla. "A doutrina peronista se aproxima em parte da doutrina social e do pensamento da Igreja. Então, houve muita aproximação entre Igreja e partido. A partir disso, o peronismo fica muito ligado aos católicos."


Golpe

Massa soube aproveitar os ataques ao papa, embora não seja ele próprio um fã de Francisco. Nos bastidores da política argentina circula a história de que o pontífice não gosta de Massa por acreditar que ele, quando era do gabinete de Néstor Kirchner, tentou armar um golpe para tirá-lo do arcebispado de Buenos Aires por ser "muito de esquerda".


Mas em seu discurso após o primeiro turno, Massa disse que pretende ser o presidente quando o papa visitar a Argentina pela primeira vez. Desde então, citar Francisco é uma constante. Durante os debates, o peronista criticou Milei por atacar "o argentino mais importante da história".


A Milei restou a tarefa de minimizar os ataques, tendo dito que já havia pedido desculpas à Igreja, o que a instituição não confirmou. "Se Francisco, líder da Igreja, vier à Argentina, será recebido com as honras de chefe de Estado e com o reconhecimento de alguém que é o líder espiritual dos católicos. Não mudamos, apesar dos ataques", afirmou Milei, após as críticas.


Seu maior problema, porém, é convencer padres e bispos que não apoiam Massa, mas pedem cautela com Milei. "Quando Milei cresceu, o setor do 'curas villeros', que são influenciados pelo peronismo, passaram a soar o alarme", disse Sturla. "A Igreja não diz 'votem em Massa', mas diz 'não votem em Milei', o que na prática é estar a favor de Massa."


ESTADÃO CONTEÚDO

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