BRASÍLIA – O governo do presidente Lula caminha para firmar um entendimento de que agora poderá cortar emendas parlamentares – ou mesmo deixar de pagar – para cumprir o arcabouço fiscal mesmo não tendo recebido aval do Congresso Nacional para isso. A análise é ancorada nas decisões do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), após o Executivo não conseguir aprovar propostas nesse sentido no Legislativo.
Uma parte do entendimento foi firmada pelo governo ao encerrar o ano de 2024 sem liberar todas as emendas parlamentares programadas para o período. Além disso, o presidente Lula vetou dispositivos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025 que o próprio governo havia proposto e que previam a execução obrigatória das emendas, a distribuição igualitária dos recursos entre os parlamentares e blindavam as emendas impositivas (obrigatórias) - aquelas previstas na Constituição - de bloqueios no Orçamento.
A análise vai além e pode atingir todas as emendas a partir deste ano. Segundo técnicos do governo e do Congresso, a partir de agora, o Poder Executivo poderá adotar o entendimento ao bloquear os recursos ou deixar de executá-los para cobrir o crescimento de despesas obrigatórias, como salários e aposentadorias, e respeitar o arcabouço fiscal, que impõe um limite para o aumento de despesas públicas de 2,5% ao ano acima da inflação.
Com isso, o valor das emendas, calculadas em R$ 50,5 bilhões para 2025, poderá cair em aproximadamente R$ 5 bilhões, segundo apurou o Estadão.
O Ministério do Planejamento e Orçamento afirmou que o governo vetou um dispositivo da LDO de 2025 que livrava as emendas de bloqueio e que contrariava a decisão do STF. A pasta disse, contudo, que a necessidade de se aprovar ou não uma nova lei para firmar o entendimento de forma definitiva ainda está em estudo no Poder Executivo. O órgão não comentou os outros atos citados pela reportagem.
Procurados, a Casa Civil e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não comentaram.
O que o STF determinou sobre emendas parlamentares
Na série de decisões que assinou, desde agosto do ano passado, o ministro Flávio Dino exigiu que as emendas cumprissem os limites fiscais. Em dezembro, veio uma nova determinação, afirmando que os recursos de interesse dos deputados e senadores não podem crescer mais do que outras despesas do Orçamento, incluindo a manutenção dos ministérios e os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC) – atualmente, as emendas têm um crescimento maior e consomem esse espaço.
Não só o nome do parlamentar e o destino têm de estar explícitos, mas também é preciso cumprir o limite de gastos do arcabouço. Atualmente, as emendas crescem mais do que outras despesas, levando o governo a incorporar a decisão do Supremo. Os recursos indicados por deputados e senadores no Orçamento cresceram conforme a arrecadação do governo federal nos últimos anos, acima de outros gastos, e têm um aumento garantido de até 2,5% acima da inflação todos os anos, conforme projeto aprovado recentemente, também acima das demais despesas.
Para se ter uma ideia, de 2024 para 2025, excluindo as despesas obrigatórias - nas quais o governo não tem a opção de gastar ou deixar de gastar, como salários, aposentadorias e pisos da saúde e educação -, todas as outras despesas ou estão congeladas e não tiveram nem reajuste pela inflação ou foram reduzidas.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou ao longo do ano passado, durante a discussão do pacote de corte de gastos, que era preciso trazer as emendas para dentro das regras fiscais – entendimento também defendido por Dino nas decisões.
O que o governo tentou e não conseguiu aprovar no Congresso
Conforme o Estadão revelou, o governo Lula queria ter o poder de mexer no Orçamento, inclusive cortando emendas parlamentares, sem pedir a aprovação do Congresso Nacional. Até então, ele só podia fazer isso por conta própria com 30% dos recursos. O que passasse desse limite precisava de aprovação do Legislativo. No caso de emendas, era necessário pedir a autorização do parlamentar que apresentou aquela indicação.
O governo tentou alterar as regras por meio da LDO de 2024, da LDO de 2025, do projeto que limitou o crescimento das emendas nos próximos anos e do pacote de corte de gastos, mas o Congresso rejeitou todas essas investidas.
Os parlamentares só aprovaram a possibilidade de bloqueio (congelamento de despesas para cumprir o arcabouço fiscal) para as emendas não impositivas, aquelas não previstas na Constituição, como as emendas de comissão, herdeiras do orçamento secreto, que já podiam ser cortadas, e ainda com limite de contenção de 15%.
Como o governo firmou o novo entendimento sobre o Orçamento
O governo Lula aplicou o entendimento do STF em duas ocasiões na última semana e uma terceira está a caminho. O Poder Executivo encerrou o ano de 2024 sem liberar (empenhar, no jargão técnico) R$ 2,4 bilhões em emendas de comissão após Dino suspender os repasses. O dinheiro não poderá ser recuperado pelo Congresso e servirá apenas para o governo fechar o balanço das contas públicas do ano passado.
Antes da decisão de Dino, o governo chegou a liberar R$ 1,8 bilhão em emendas de comissão, burlando a determinação do Supremo. Nessa fase de empenho, o dinheiro ainda não cai na conta dos Estados e municípios, mas serve como a emissão de uma fatura para a execução de projetos e obras e pagamento futuro. Diante dos questionamentos e do novo despacho do ministro, os técnicos orientaram os ministérios a não repassar o recurso.
No dia 31 de dezembro, o presidente Lula sancionou a LDO, que define as regras do Orçamento e autoriza o governo a cumprir despesas obrigatórias mesmo sem a aprovação do Orçamento (LOA), que ficou pendente no Congresso. O chefe do Poder Executivo vetou uma série de dispositivos que protegiam as emendas. Entre eles, estão regras que o próprio governo colocou no projeto ao enviar a proposta para o Legislativo.
Lula vetou um dispositivo que dizia que a execução das emendas impositivas é obrigatória e que a liberação dos recursos deve ser feita de forma equitativa, sem olhar para o autor e o partido do parlamentar. Derrubou ainda um item que determina o empenho (reserva) e o pagamento efetivo das despesas – ou seja, toda a execução orçamentária – para cumprir a obrigação.
O entendimento é inédito e contraria práticas adotadas desde 2019, quando o Congresso avançou ainda mais no Orçamento e aprovou o orçamento secreto e as emendas Pix. Com as decisões de Dino, o Executivo federal não se vê mais na obrigação de pagar emendas aprovadas pelo Congresso a qualquer custo.
Segundo o governo, o dispositivo “não é acompanhado de exceção e poderia ser interpretado como limitador à possibilidade de bloqueio e redução dessas despesas para cumprimento dos limites individualizados estabelecidos na Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023 (arcabouço fiscal)”.
Ao vetar, o Planalto citou a decisão de Dino afirmando que “deve-se levar em consideração a decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 854, segundo a qual quaisquer regras, restrições ou impedimentos aplicáveis às programações discricionárias do Poder Executivo se aplicam às emendas parlamentares, e vice-versa”, nos termos do arcabouço e do projeto que impôs um limite para o crescimento das emendas.
Lula também vetou um trecho que livrava as emendas impositivas de bloqueio, e que o próprio Executivo havia colocado no projeto da LDO. O Planalto argumentou que a regra contrariava a decisão do STF e que as emendas devem “possuir o mesmo tratamento de bloqueio e contingenciamento aplicável a qualquer despesa discricionária do Poder Executivo federal”.
Valor das emendas pode cair em R$ 5 bi com decisão do STF
Para 2025 e nos próximos anos, mesmo sem ter aprovado o bloqueio de emendas, o governo entende que a decisão do STF abre caminho para os cortes nos recursos de maior interesse do Congresso. O bloqueio acontece quando os gastos obrigatórios crescem e o limite de gastos do arcabouço fiscal está sob risco. Assim, o governo é levado a conter as despesas do Orçamento, sacrificando o custeio da máquina e os investimentos.
Técnicos do Congresso calculam que o entendimento abre caminho para uma redução de aproximadamente R$ 5 bilhões em emendas em 2025. O valor programado pelo Congresso para esses recursos é de R$ 50,5 bilhões e pode ser ainda maior a depender da votação do Orçamento, que ainda não foi feita e deve ser retomada em fevereiro, com o retorno dos trabalhos legislativos.
“Todo mundo já estava trabalhando com valores pré-definidos, que já estavam na Constituição e que foram redefinidos em acordo com o Poder Executivo e agora se corre o risco de diminuir”, afirmou o consultor-geral da Câmara, Wagner Primo Figueiredo Júnior, em entrevista à TV oficial da Casa em dezembro. “Se diminuir, o dinheiro vai para outro lugar. O que muda é que havia a garantia de se chegar aos municípios. Ele não tem mais a garantia de chegar aos municípios.”
Para alguns especialistas, o entendimento é frágil, porque as regras que blindam as emendas estão na Constituição. Nos bastidores, parlamentares veem o governo Lula alinhado e se ancorando nas decisões de Dino para recuperar parte do poder que o Poder Executivo perdeu nos últimos anos para o Congresso quando o assunto é orçamento público. O embate deve atrasar ainda mais a votação do Orçamento de 2025.
Estadão