sábado, 17 de maio de 2025

Mãe de bebê reborn: é sério ou é brincadeira? Entenda o fenômeno

 






“O ritual de cuidar do reborn (alimentar, vestir, acariciar) permite a exteriorização do luto, ajudando na reorganização emocional. Embora o uso terapêutico dos reborns seja válido em casos específicos, é importante olharmos para o risco de substituição de relações reais. Quando o apego à boneca impede a formação de vínculos humanos ou reforça padrões dissociativos, pode indicar fragilidades emocionais não resolvidas, exigindo intervenção profissional," esclarece a psiquiatra.


Terapia, substituição ou sinal de sofrimento?

Um estudo clínico realizado na Itália (2021) sobre Terapia com bonecas em idosos com demência, mostrou que o uso de bonecas em casas de repouso reduziu significativamente sintomas como agressividade, apatia e agitação em pacientes com demência. Também diminuiu a sobrecarga emocional de cuidadores e a incidência de delírio entre os idosos.


As bonecas atuam como objetos transicionais, reorganizando a relação do indivíduo com o mundo e consigo mesmo. Na visão do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, o uso da reborn pode funcionar como uma metáfora saudável -- em casos como a elaboração de um luto ou a fobia à maternidade --, mas também pode se transformar em uma substituição problemática:


“A boneca tem uma função metafórica, de elaborar ficcionalmente aquilo que não consegue ser bem subjetivado pela pessoa. Mas há usos não metafóricos, em que a confusão com a realidade aumenta de tal maneira que você tem uma verdadeira substituição. Esse processo pode ter função para quem vive, mas causa estranhamento em quem observa -- porque parece pular o processo do luto,” explica.


A Dra. Maria Carolina destaca que é importante não patologizar o fenômeno dos bebês reborn. “Quando tantas pessoas dividem o mesmo comportamento, é preciso entendê-lo como fenômeno social, não como doença individual. [...] De alguma forma, mesmo que haja afeto, o que se tem é uma projeção simbólica -- como acontece nos jogos lúdicos. Apenas quando se perde a distinção entre fantasia e realidade, pode haver indicação de transtorno psiquiátrico."


Segundo ela, existem critérios funcionais e contextuais que ajudam a diferenciar entre um uso terapêutico e um comportamento que exige atenção clínica. “Se o uso da boneca substitui relações humanas, causa isolamento progressivo ou compulsões -- como lavar ou vestir repetidamente para aliviar a ansiedade, consumindo muito tempo da pessoa -- ou se há crenças delirantes em que se perde o limite entre o real e a fantasia, pode haver necessidade de intervenção," pondera.


Muitas mães de boneca compartilham nas redes sociais suas rotinas de cuidado, montam enxovais e participam de grupos on-line que funcionam como verdadeiras redes de apoio emocional. Esse comportamento foi analisado no artigo científico “Relações sintéticas com bonecas e seus efeitos simbólicos e terapêuticos”, da doutora em Humanidades Emilie St-Hilaire, da Concordia University, publicado no American Journal of Play (2024).


Segundo a pesquisa, 80% das entrevistadas consideram os fóruns online fundamentais para o seu bem-estar emocional. Além disso, a prática envolve o conceito de retail therapy, a compra de roupas e acessórios para os bonecos reborn como uma forma simbólica de expressar afeto, elaborar lutos ou experimentar a maternidade de maneira controlada, sem os desafios concretos de criar um filho.


Para Dunker, o fenômeno revela uma nova forma de vínculo na era contemporânea. “Esses objetos funcionam como suportes simbólicos. Aprendemos e ensaiamos a paternidade ou maternidade com eles. Mas quando a relação se torna hiperintensa, as fronteiras entre fantasia e realidade se afinam -- e aí surge o estranhamento. A boneca tem pele, cabelo e gestos realistas. Só o olhar não acompanha, o que nos remete ao ‘vale da estranheza’.”


Mais do que sintoma individual, o fenômeno pode ser reflexo de impasses sociais e emocionais da contemporaneidade. Para Dunker, essa prática pode estar ligada ao aumento da solidão em grandes centros urbanos -- mas também aos dilemas impostos pela maternidade hoje.



“A interrupção de carreira, efeitos no corpo, medo de fracassar como mãe. O reborn oferece uma maternidade sem ônus, um ‘filho que não chora, não adoece, não cresce’. Ele representa o desejo sem o risco,” analisa o psicanalista.



Dunker propõe ainda uma reflexão não apenas sobre quem pratica, mas sobre o incômodo que essa prática causa no outro. “Por que achamos estranho? Porque há um ponto em que o semelhante se torna excessivamente parecido -- e isso nos assusta. O termo ’reborn' (renascido) sugere que algo se perdeu e precisa ser resgatado. É aí que essa prática se aproxima do luto e das nossas próprias dificuldades em lidar com a perda," explica.


Em tempos marcados por ansiedade, hiperindividualismo e vínculos frágeis, o cuidado com bonecas reborn pode representar tanto uma busca legítima por afeto quanto uma tentativa simbólica de reorganizar a dor. E como conclui a pesquisadora St-Hilaire, buscar companhia e graça em um relacionamento sintético pode parecer estranho, mas talvez seja, justamente, um gesto de esperança: um abrigo delicado contra o peso do mundo.


Por Carolina Delboni

                                                   Boneca Reborn

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