quarta-feira, 7 de julho de 2021

Especialistas discordam do uso do termo velhice em lista de doenças

 


Agência Brasil

Ex-atleta profissional de futebol, o psicólogo Luis Fernando Silveira, hoje com 59 anos, segue disputando suas "peladas" semanais com amigos. A maioria está na mesma faixa etária e o conhece desde os tempos em que ele defendia clubes como o São Paulo e o Goiás, nos quais ficou conhecido como Bico Fino.


Mesmo não apresentando a habilidade e velocidade de antes, os jogadores seguem competitivos. Oficialmente, as partidas servem de pretexto para reunir amigos, se divertir, evitar o sedentarismo e celebrar o fato de os participantes continuarem aptos a jogar seu futebol e a desempenhar uma série de atividades. Contudo, ninguém quer perder um jogo.


Apesar da atual disposição, alguns médicos podem deduzir que Silveira ficará doente em 1º de janeiro de 2022 – mesmo que sem nenhum prejuízo ao seu atual bem-estar. Tudo porque, no primeiro dia do próximo ano, quando o psicólogo completa 60 anos de idade, entrará em vigor a nova edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11). Nesse documento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu incluir o termo velhice, sob o código MG2A.


“Se, por qualquer motivo, ele [Silveira] tiver que procurar um médico a partir de 1º de janeiro, o profissional de saúde poderá considerá-lo doente pelo simples fato de ele já ter 60 anos de idade. Ele e muitas outras pessoas”, disse à Agência Brasil a presidente da Sociedade Brasileira de Gerontologia e Geriatria (SBGG), Ivete Berkenbrock, explicando que, para a OMS, em países em desenvolvimento a velhice começa aos 60 anos.


“A menos que a decisão seja revista, os profissionais da saúde poderão sim usar o código da CID para velhice no lugar de uma série de manifestações. Porque não está claro em que casos esse código poderá ser utilizado”, acrescenta Ivete, criticando a iniciativa. “Se os profissionais passarem a anotar esta única CID em vez dos outros códigos já empregados para identificar várias e diferentes doenças, isso vai mascarar não só os resultados de futuros estudos epidemiológicos, como afetará a definição de políticas públicas e pode vir a estigmatizar as pessoas.”


Criada em 1893, a Classificação Estatística Internacional agrupa uma série de doenças e de situações em que há necessidade de atendimento clínico. Adotado pela OMS em 1948, o documento utilizado por profissionais de mais de 150 países está em sua décima edição, implementada em 1993. A nova versão, a CID-11, foi aprovada em maio de 2019, após um processo de consultas, discussão e revisão textual, mas só a poucos meses de entrar em vigor a inclusão de um código para designar a velhice (ou, no inglês, old age) chamou a atenção de profissionais de saúde.


Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, parte dessa repercussão se deve ao fato de, em abril deste ano, médicos terem atestado a morte do príncipe Philip, de 99 anos, como causada por velhice, ainda que o marido da rainha Elizabeth II, do Reino Unido, tivesse passado por uma cirurgia cardíaca poucas semanas antes.


Impactos

A OMS sustenta que o fato de incluir um código específico para velhice no documento não significa que tenha classificado essa fase natural da vida como uma doença, já que a CID, conforme o próprio nome indica, não lista apenas estados patológicos. “O CID contém, por exemplo, lesões, achados, motivos de encontro com o sistema de saúde ou condições que podem ou não exigir o apoio do sistema de saúde, dependendo do contexto e da extensão do sofrimento vivenciado pelo indivíduo”, informa a organização, em nota.


“A CID reconhece que as pessoas podem morrer de velhice – e existe um código que se pode usar caso seja essa a única coisa declarada em um atestado médico de causa da morte”, destaca a OMS. “Mas o envelhecimento não é identificado como porta de entrada para [uma situação que, necessariamente, exija] prevenção ou tratamento”, acrescenta.


A explicação não convence o psicólogo e boleiro Luis Fernando Silveira, que só pôde atender à reportagem após um longo dia de trabalho. “Acho isso muito subjetivo. Eu mesmo pratico esportes, trabalho, vou regularmente ao médico e estou saudável. Acho uma medida desnecessária, que não faz muito sentido. E que, de certa forma, pode ampliar o preconceito contra os idosos.”


A vice-corregedora do Conselho Federal de Medicina (CFM), Helena Leão, concorda com Silveira. Da mesma forma que Ivete Berkenbrock, da SBGG, Helena espera que a OMS reveja a decisão, sob risco de impor à sociedade impactos sociais e econômicos que, segundo ela, incidirão sobre as políticas públicas de cada país.


“No Brasil, a categoria médica se surpreendeu ao tomar conhecimento da iniciativa, pois me parece que ninguém esperava uma mudança como essa”, disse Helena, destacando que, na CID-10 já há um diagnóstico para a senilidade, ou seja, para classificar eventuais processos de adoecimento na terceira idade. Ele difere dos conceitos de envelhecimento (tido como um processo natural, que se inicia logo após o nascimento) e de senescência (o gradual comprometimento de algumas funções do indivíduo em decorrência do passar dos anos).


“O envelhecimento caracteriza a evolução fisiológica natural de todo ser humano. É uma etapa da vida, não uma doença. Principalmente em uma época em que os idosos são participativos, produtivos, trabalham”, comentou a representante do CFM, frisando que, se colocado em prática, o uso do termo velhice suscitará questões que precisam ser esclarecidas.


“Todas as pessoas idosas vão receber este CID quando o profissional de saúde assinar um documento ou preencher uma declaração de óbito? E quanto aos diferentes contextos nacionais? Há países em que a pessoa só é considerada idosa a partir dos 70 anos. Em outros, aos 65. Pelo critério da OMS, no Brasil, seremos todos doentes a partir dos 60 anos? E para efeitos trabalhistas? Qual o impacto dessa decisão?”, questiona Helena, lembrando que a OMS estabeleceu os anos de 2020 a 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, cujo objetivo é tentar erradicar preconceitos e a discriminação contra os idosos. “É uma contradição.”


Interpretação

Ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS, o presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR), Alexandre Kalache, concorda que, embora a OMS não afirme rigorosamente que a velhice é uma doença, a inclusão do termo na CID permite esse tipo de interpretação. O que, no entendimento do médico, suscita uma questão ética.


“Algo visto como uma doença pode e deve ser prevenido ou tratado. Nesse caso, não faltará quem se valerá para prescrever medicamentos, intervenções e supostos tratamentos. Já há, hoje, uma enorme pressão nesse sentido. Pressão exercida por grupos econômicos, pela indústria antienvelhecimento, que movimenta bilhões de dólares prescrevendo supostos procedimentos sem qualquer base científica com o pretexto de deter o avanço do envelhecimento. Com um código que permita o enquadramento da velhice como doença, será possível justificar várias dessas intervenções”, alerta Kalache, destacando que, se efetivada, a medida tende a aumentar a insegurança jurídica.


“Operadores de planos de saúde e eventuais empregadores poderão taxar as pessoas, que podem, inclusive, não conseguir tratar certos problemas de saúde, como, por exemplo, um câncer de próstata, que poderá ser considerado uma comorbidade da condição primordial, ou seja, a velhice”, acrescentou Kalache, que acredita na reversão da medida. “Será preciso barulho, mobilização, mas acredito que a OMS ouvirá os especialistas e substituiremos este termo. Talvez possamos detalhar melhor a senescência e empregá-la no lugar de falar apenas em velhice, que é um conceito cronológico.”

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