sexta-feira, 3 de maio de 2019

Filme: A Sombra do Pai



Tal como em sua potente estreia em longas, O Animal Cordial (2017), Gabriela Amaral Almeida exercitou mais uma vez seu domínio numa obra de gênero em A Sombra do Pai. Drama de terror que tematiza uma fantasia sombria da infância, tem ao centro uma menina de 9 anos, Dalva (a impressionante Nina Medeiros). A garota é órfã de mãe e cuidada por uma tia (Luciana Paes, prêmio de melhor atriz coadjuvante em Brasília) que está prestes a se casar. O pai da garota, Jorge (Júlio Machado), é um pedreiro que fica longe da filha mesmo quando está presente. Sufocado por emoções que não consegue expressar, ele é atravessado pela brutalidade das condições de trabalho, a própria insegurança do emprego e também por uma tragédia envolvendo um amigo.

O desenho da produção compõe os ambientes em que se passam a maior parte das cenas, a casa humilde de bairro proletário de São Paulo (Freguesia do Ó) e o canteiro de obras, como cenários sombrios, que espelham os medos de seus habitantes, como uma extensão de seus pesadelos. Pontuando esse clima com um pé no real, outro no fantástico, a menina acredita que tem poderes sobrenaturais e que poderá trazer sua mãe de volta do reino dos mortos. Os medos que assombram seu pai assumem a apavorante materialidade de um fantasma, um soldador com rosto sempre oculto por uma máscara de ferro e que usa suas ferramentas produzindo sons e faíscas.

Esse recurso à crença no sobrenatural mostra-se uma resposta da própria fragilidade destes personagens – na falta de meios eficazes para o enfrentamento de questões tão avassaladoras para os seus limites, recorre-se ao imaginário que está sempre ao alcance da mão, no caso das personagens femininas. Jorge permanece encastelado em sua afasia, em sua impossibilidade de comunicação. Como definiu a diretora num debate sobre o filme, no Festival de Brasília 2018: “A humanidade não tem como sair. Ele também é vítima desse sistema patriarcal que está ao nosso redor”.

Tanto quanto em seu visceral longa de estreia, O Animal Cordial, existe aqui um discurso social transparente nestas relações – e que Gabriela articula de forma mais orgânica do que um outro filme com o qual seu cinema tem parentesco, Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas.

Neste jogo, há uma criança solitária repentinamente empoderada em seu círculo familiar com a partida da tia, levando-a a assumir um protagonismo apoiado em seus supostos poderes. O que lhe dá uma vantagem, pelo menos imaginária, sobre o pai, cujo desmoronamento emocional é evidente, além de sua vulnerabilidade econômica. A ferida em suas costas que não quer sarar é um símbolo gritante de tudo o que este homem não consegue dizer.

Neusa Barbosa

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