domingo, 30 de junho de 2024

Entrar na ABL nunca foi sonho, diz Martinho da Vila, que disputou sem levar voto

 

                                          Ettore Chiereguini/Folhapress


"Nunca pensei muito nisso, não", disse o sambista e escritor Martinho da Vila quando ouviu uma pergunta da mediadora Adriana Couto sobre entrar na Academia Brasileira de Letras, a um público de centenas de pessoas aglomeradas num fim de sábado frio na Feira do Livro, em São Paulo.


"Concorri uma vez, uns segmentos do movimento negro vieram e falaram que a ABL tinha sido fundada pelo Machado de Assis e só tinha um negro. Eu concorri, mas não recebi nenhum voto", contou, em meio a gargalhadas.


O episódio foi em 2010, e o eleito foi o diplomata Geraldo Cavalcanti —também concorreram e perderam o ex-ministro Eros Grau e o filósofo Muniz Sodré, que foram mais votados que Martinho.


"Agora também não pretendo concorrer mais", continuou. "Você tem que primeiro frequentar a Academia, ir lá ver palestras, torcer para ser convidado no chazinho das cinco. Descobri que não adianta concorrer, a diretoria se reúne, uns quatro ou cinco escolhem um candidato e resolvem qual será. Vai ser o afilhado de quem dessa vez?"


"Se vier é bom, é uma honraria, mas não é um sonho, um sentido de vida, é uma coisa vaidosa. Meu sentido é ser referência para jovens da minha origem", arrematou.


O público no Pacaembu se alegrou quando o cantor entoou por alguns minutos um samba seu que homenageava justamente o fundador daquela casa centenária.


"Comecei a me interessar mais pelos livros por causa de um samba-enredo sobre a epopeia de Machado de Assis. Fui pesquisar sobre ele na biblioteca. Achava que era branco, mas todo negro que se destacava era embranquecido."


A conversa passeou pelas mais diversas lembranças da carreira do compositor, que lançou há pouco pela Planeta o livro "Martinho da Vida", uma espécie de autoficção em que dois homens batem papo num "diálogo-monólogo", como ele define.


"São dois personagens, o Da Vila, que sou eu, e o Zé Ferreira, que sou eu também", brincou o escritor de 86 anos. "Um tem dúvidas sobre palco, música, e o outro tem curiosidade sobre a vida do outro, a família, por onde andou."


Nessas andanças o compositor sobrevoou seu tempo no Exército, viagens a Angola e histórias afetuosas de seu começo de carreira.


Numa das mais saborosas, lembrou que sua mãe não gostou nada quando ouviu seu samba seminal "Casa de Bamba" apresentado no Festival da TV Record, em 1968. Ele contou que a casa de sua família "não era muito" de bamba.


"Cheguei em casa para minha mãe, ‘viu o filhão lá, gostou?’, e ela disse que achou a do ano anterior melhor", relembrou em referência à mais comportada canção "Menina Moça".


"Agora essa a música é mentirosa, é mentira sua, eu bebo por acaso, aqui se fala macumba?", retrucou a mãe do cantor, indignada. "Ela era muito religiosa e achou que iam pensar mal da nossa família."


O cantor celebrou a união do samba com a literatura e reafirmou que sua maior vontade é mostrar a jovens negros que eles podem chegar ao lugar que quiserem.


"Todo mundo pode criar música. De Martinho da Vila está cheio pelo Brasil afora."

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