segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Técnicos da Anvisa dizem que acelerar rivais do Ozempic pode travar remédios prioritários

 

                                           O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, apresenta canetas emagrecedoras da EMS durante evento da empresa em Brasília - Reprodução

  • OUTRO LADO: agência afirma que definiu limite de processos priorizados para não prejudicar outros medicamentos

  • Notas técnicas criticam plano e dizem que acelerar novas canetas emagrecedoras não garante acesso



Técnicos de setores de avaliação de medicamentos da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirmam que o plano de acelerar a análise de canetas emagrecedoras pode atrasar o lançamento de terapias mais importantes, incluindo para doenças graves, como câncer, epilepsia, Parkinson avançado e AME (Atrofia Muscular Espinhal).


O alerta consta em duas notas técnicas elaboradas no começo de agosto, antes de a agência lançar um edital permitindo que produtos contendo liraglutida ou semaglutida, que são os princípios ativos de emagrecedores como Saxenda e Ozempic, furassem a fila de análises.


Questionada sobre as manifestações dos técnicos, a Anvisa afirmou que os documentos tiveram justamente o objetivo de avaliar "todos os aspectos de uma intervenção regulatória". A agência disse que os riscos foram ponderados e que definiu um limite de processos priorizados para que não haja prejuízo a outras terapias.


O órgão regulador afirmou que tem regras que garantem a priorização de análise de produtos que visam atender a condições sérias debilitantes, doenças raras e emergências em saúde pública, entre outras situações.


"A capacidade operacional da Anvisa tem sido um desafio da atual gestão da instituição e vem sendo enfrentada com uma série de medidas, que vai desde rearranjo de processos, investimentos em novas tecnologias até a reestruturação do quadro de técnicos", disse.


A agência priorizou 20 canetas e estima que se manifestará ainda em 2025 sobre os pedidos de EMS, Megalabs e Momenta.


Uma das notas obtidas pela reportagem contrárias a acelerar o registro das canetas, elaborada pelo setor de avaliação de segurança e eficácia dos medicamentos, diz que a mudança na ordem poderia gerar questionamentos da indústria e da sociedade.


Isso porque os demais pedidos "seriam preteridos mesmo diante de alta relevância clínica e de impacto na saúde pública esperados", segundo a nota.


O documento ainda afirma que acelerar os concorrentes de medicamentos como o Ozempic não é capaz de coibir as falsificações e a manipulação indiscriminada de medicamentos. "Na verdade, a priorização não poderia garantir nem mesmo a disponibilidade desses medicamentos no mercado."


O risco de desabastecimento e os relatos de falsificação são citados pela Anvisa como argumentos centrais para acelerar a análise dos concorrentes. A priorização foi inicialmente sugerida pela gerência de fiscalização do órgão regulador.


Ao formalizar o edital, em agosto, a Anvisa também mencionou que o Ministério da Saúde defendeu a priorização para "reduzir a dependência tecnológica" e promover "soberania e autonomia nacional".


Dias antes de o ministério acionar a Anvisa, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, fez uma espécie de propaganda dos emagrecedores recém-lançados pela farmacêutica EMS, os primeiros de fabricação nacional contendo liraglutida. Os emagrecedores são medicamentos controlados, categoria em que propaganda, entrega de amostra grátis e outras ações de marketing são proibidas. O aumento do consumo para fins estéticos preocupa associações e sociedades médicas.


Durante a discussão sobre o edital, outra área técnica, que trata da avaliação da qualidade de medicamentos sintéticos, disse que a Anvisa apresentou dados com "fragilidade conceitual" sobre concentração de mercado e risco de desabastecimento ou falsificação das drogas.


O argumento da agência, segundo os técnicos do próprio órgão, não teria considerado que parte dos princípios ativos das canetas ainda é protegida por patente.


"Tal omissão induz à percepção equivocada de que a concentração decorre da ausência de concorrência por ineficiência regulatória, quando, na verdade, deriva de monopólio legal decorrente de direitos de propriedade intelectual", afirma a nota.


O mesmo documento afirma que a falsificação dos fármacos deve ser combatida por meio de ações de fiscalização e repressão sanitária.


"A introdução de cópias não se mostra estratégia eficaz de curto prazo, pois, mesmo aprovadas, essas não seriam competitivas em preço com os medicamentos falsificados, nem há garantias de que a aquisição dos medicamentos falsificados ocorra única e decorrente de motivos ligados ao abastecimento."


A nota também afirma que a força-tarefa para avaliar as canetas ultrapassaria a capacidade de trabalho do setor. O departamento diz ser contrário à "priorização ampla" e ponderou que, caso a Anvisa decidisse confirmar a medida, no máximo três pedidos deveriam ser analisados por semestre. A sugestão foi acolhida pela direção do órgão.


Já a área de avaliação de segurança e eficácia aponta que a priorização poderia atrasar a análise de medicamentos inovadores "destinados ao tratamento de condições sérias debilitantes com alternativas terapêuticas limitadas ou ausentes, como câncer colorretal metastático, epilepsia refratária/farmacorresistente, esclerose múltipla secundária progressiva, doença de Parkinson em fase avançada, atrofia muscular espinhal", entre outras doenças.


O plano de acelerar o lançamento das drogas recebeu críticas de entidades como a Interfarma e o Sindusfarma, que apontaram risco de insegurança jurídica e de atraso em outras avaliações. Já a PróGenéricos disse que havia aumento exponencial da procura pelos fármacos e que a medida tem "razões excepcionais de interesse público"


Mateus Vargas

Folha de São Paulo

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