“Recueil des Loix Constitutives des États-Unis de l’Amérique” estava com Tiradentes — Foto: Divulgação
Em 10 de maio de 1789, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi preso no Rio acusado de conspiração contra o Império. Guardado no bolso do líder revolucionário, um livro mal chamou atenção da Coroa Portuguesa. Passados mais de dois séculos, porém, o item apreendido à época — repleto de anotações feitas à mão — é considerado por historiadores um dos principais documentos da Inconfidência Mineira. O exemplar do “Recueil des Loix Constitutives des États-Unis de l’Amérique”, que reunia as leis constitutivas dos EUA, inspiração para revoltas separatistas, passará agora por uma análise da Polícia Federal (PF). O objetivo é atestar se os escritos nas páginas são de autoria de Tiradentes, revelando mais camadas sobre o movimento.
— O livro é importante porque mostra que os conjurados desejavam uma ruptura republicana e, para isso, estavam estudando a Revolução Americana de 1776. De fato, estavam pensando em elaborar uma Constituição. Tiradentes levava o livro no bolso mesmo quando foi preso, andava com ele para todo o lado — afirma Alex Sandro Calheiros, diretor do Museu da Inconfidência.
O “Recueil” foi editado por Thomas Jefferson, autor da declaração de independência dos Estados Unidos, e distribuído na Europa para disseminar ideais republicanos. O resultado foi uma coletânea, em francês, de seis constituições dos estados federados criados após a Revolução Americana. Pelo caráter antimonárquico e revolucionário, ganhou a alcunha de “livro proibido”.
Dois anos antes da Inconfidência Mineira, ocorrida em 1789, foi formada a chamada Missão de Venderk, para tentar o apoio dos EUA à causa no Brasil. Assim, três conjurados viajaram até Nimes, na França, onde se encontraram com Thomas Jefferson e receberam um exemplar do livro.
Fora da comitiva, Tiradentes recebeu a obra e logo demonstrou interesse, pedindo ajuda para as traduções, já que não falava francês. O livro apreendido trazia várias anotações, hoje quase imperceptíveis.
‘Pensamento iluminista’
A pedido do Museu da Inconfidência Mineira, a obra passará por exames grafológicos no Serviço de Perícias Documentoscópicas (SEP-DOC) para verificar se a escrita é de Tiradentes. Serão comparadas a caligrafia nas páginas — que, mesmo praticamente apagadas, ainda estão marcadas no papel — com a de documentos oficialmente assinados pelo líder inconfidente. No último dia 11, o Instituto Brasileiro de Museus entregou o livro à PF, e a análise está em andamento.
— Se confirmada a autoria, o valor histórico, patrimonial e afetivo do bem se eleva muito, oferecendo novas camadas de entendimento à atuação de Tiradentes e ao pensamento iluminista que influenciou a Inconfidência — diz Calheiros.
O escritor Lucas Figueiredo, autor de “O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier”, reforça que a investigação “pode trazer revelações históricas importantes”. Ele explica que o livro não foi considerado uma prova relevante no julgamento de Tiradentes porque já havia muitas outras evidências da conspiração, mas que é um objeto definitivo para entender a história da Inconfidência Mineira:
— Mostra como se formou o pensamento do Tiradentes, que se encanta ao ler ali que todos nascem iguais. Fala sobre democracia, eleição, voto — enumera o biógrafo. — Não é uma questão para o passado, é uma questão para o futuro. Para a gente entender a primeira ideia de um Brasil independente.
Apesar da relevância histórica, o livro só retornou a Ouro Preto (MG), antiga Vila Rica, 195 anos após a prisão de Tiradentes. No início do século 20, o Arquivo Nacional havia enviado a obra para a biblioteca pública de Florianópolis. Em 1984, no feriado nacional do Dia do Tiradentes, uma cerimônia marcou a devolução do item, com a presença dos governadores Espiridião Amim e Tancredo Neves, de Santa Catarina e Minas, em um trabalho do então secretário de Cultura de Minas, José Aparecido de Oliveira.
Desde então, historiadores como Júnia Furtado e o americano Kenneth Maxwell destacaram a presença daquelas anotações nas páginas, o que será investigado agora.
-- O historiador Tarquínio Barbosa de Oliveira dizia que o livro é o grande documento da Inconfidência, porque mostra o engajamento ideológico dos inconfidentes com o modelo de República — afirma Angelo Oswaldo de Araújo, prefeito de Ouro Preto, que atuou no resgate da obra como assessor de José Aparecido. — Tiradentes era um homem inteligente. Há quem diga que era um falastrão. Mas ele falou demais porque tinha ideias a expor, amparado nas ideias de um país (os Estados Unidos) que se tornara independente poucos anos antes.
Por
Lucas Altino
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