O crítico, professor de cinema e ator Jean-Claude Bernardet -
Morreu na manhã deste sábado Jean-Claude Bernardet, um dos maiores críticos do cinema brasileiro, aos 88 anos. O intelectual convivia com o HIV, com um câncer reincidente na próstata, que ele decidiu não tratar com quimioterapia, e a quase perda da visão por conta de uma degeneração ocular.
A morte foi confirmada pelo cineasta Fábio Rogério, que acompanhava o crítico no Hospital Samaritano, em São Paulo. Ainda não há detalhes sobre a causa da morte. O velório será feito na Cinemateca Brasileira, entre 13h e 17h do domingo (13).
Bernardet parecia dispor de várias vidas. Crítico, professor, historiador, escritor, roteirista, ator, cineasta e diretor, sua intervenção vasta na cultura brasileira emanava sobretudo da crítica de cinema, o filtro de sua experiência.
Professor da USP e militante de esquerda, ele foi cassado e aposentado pelo Ato Institucional Nº5 (AI-5). Com humor, o crítico dizia que os militares transformaram um professor semianônimo em opositor célebre do regime.
Em 1979, na esteira da Lei de Anistia, Bernardet foi reintegrado à Escola de Comunicações e Artes (ECA), onde se aposentou em 2004. Sua homossexualidade era com frequência usada por adversários nos ataques a suas ideias.
Homem de opiniões dissidentes, temperamental confesso e apaixonado pelo debate de ideias, Bernardet conciliava o pendor de historiador e o desapego a memórias pessoais.
"Sou um cara que vive no presente, que tem poucas recordações e não faz muita questão delas. Atualmente estou fazendo teatro. E é isso", ele disse em abril de 2018, em seu apartamento no edifício Copan, em São Paulo, perto de estrear na direção teatral com "A Procura de Emprego", do francês Michel Vinaver, co-dirigida com Rubens Rewald.
Nascido na Bélgica, em 2 de agosto de 1936, Jean-Claude Georges René Bernardet passou a infância em Paris e se mudou aos 13 anos com a família para o Brasil. Naturalizou-se brasileiro em 1964.
Formado em artes gráficas no Senac, ele trabalhou na Livraria Francesa, no centro de São Paulo, e nela conheceu o crítico Paulo Emílio Sales Gomes, responsável por sua entrada na Cinemateca Brasileira e no Suplemento Literário do jornal "O Estado de S. Paulo". À época, já participava do cineclubismo.
Sua atuação crítica se caracterizou pela diversidade de filmes analisados, a visão panorâmica de movimentos cinematográficos, as reflexões teóricas sobre o cinema novo e o cinema marginal (ou "marginalizado"), o estilo propenso a afirmações assertivas e polêmicas e, num terreno de precariedade bibliográfica, o cuidado de sistematizar informações sobre a produção nacional de filmes, como comprova seu livro "Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro", de 1995.
Era notável seu corpo a corpo com o cinema brasileiro, refletido no desejo de intervir e dialogar com cineastas, dentre eles Eduardo Coutinho, que reconhecia a importância das opiniões de Bernardet na concepção de seus documentários posteriores a "Cabra Marcado para Morrer".
Mais do que em Sales Gomes, é possível acompanhar em suas críticas o processo do cinema novo. "Sento sempre nas primeiras fileiras. Não há nenhuma distância respeitável a manter entre mim e o filme. O prazer de ser esmagado por uma imagem cinematográfica. O prazer de ser esmagado", escreveu o crítico em 1960.
Sales Gomes foi seu mestre, interlocutor e confidente. Numa viagem a Salvador, em 1962, os dois críticos aprofundaram a amizade por razões amorosas. Durante uma conferência na jornada de cineclubes, Sales Gomes se apaixonou pela atriz baiana Dinalva Scher.
No hotel, desafiado pelo amigo, Bernardet adivinhou qual mulher o enfeitiçara. "Isso marcou um novo estágio de relações com o Paulo. Porque o Paulo me achava hiperracionalista. ‘Não sabia que você tinha esse nível de intuição’. Ele não tinha me falado nada. Eu nem conhecia a Dina.Vim a conhecer depois", lembrou Bernardet, em 2018.
O professor de cinema da ECA-USP, Mateus Araujo, pesquisou a obra do crítico e destaca a sua formação intergeracional.
"Jean-Claude produziu talvez a melhor crítica do cinema brasileiro da sua geração, constituindo o elo mais significativo entre, de um lado, a de Paulo Emilio, Walter da Silveira e Alex Viany e, de outro, a de Ismail Xavier e José Carlos Avellar. Ele é um daqueles emigrados que abraçaram nossa cultura e ajudaram a compreender sua produção artística de ponta", diz Araújo. Em 1965, Bernardet se integrou à criação do curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB), que aglutinava Sales Gomes, Pompeu de Souza e Nelson Pereira dos Santos, entre outros nomes.
Escrito nos poucos meses de seu mestrado na UnB, interrompido pela ocupação do Exército no campus, "Brasil em Tempo de Cinema", de 1967, se tornou a sua obra mais conhecida. No exame a contrapelo de filmes nacionais lançados entre 1958 e 1966, ele enquadrou uma geração que buscava o homem e a realidade brasileira.
Em seu movimento de ideias, mobilizava estética e política, cinema e sociologia, e punha em questão o caráter revolucionário do cinema novo. "A situação brasileira, em relação a cinema, é um típico exemplo de alienação. A atividade cinematográfica no Brasil, no plano comercial e cultural, tem sido no sentido de afastar-se de nós próprios. A realidade brasileira só limitada e esporadicamente recebeu tratamento cinematográfico", afirmou Bernardet em "Brasil em Tempo de Cinema".
Para Bernardet, o cinema novo expressava problemas da classe média e "buscava abrigo atrás do escudo do passado". Não deixou de questionar o distanciamento de Glauber Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos da problemática urbana para realizar filmes rurais e de cangaço – "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Os Fuzis" e "Vidas Secas".
Os cineastas oriundos da classe média enfrentavam, a seu ver, tanto uma mentalidade importadora como a "realidade violenta e agressiva" do país. O livro apresentava fragilidades na definição sociológica de classe média, reconhecidas mais tarde pelo próprio autor, mas não deixou de acender um intenso debate cinematográfico.
Dedicado a Antonio das Mortes, personagem de "Deus e o Diabo", a obra despertou a reação aguerrida de Glauber Rocha. "Jean-Claude Bernardet é um canalha e ponto final", atacou o cineasta, em entrevista à Folha, em 1979. Com injustiça, definiu-o como "o crítico mais reacionário do Brasil".
"Eu nunca reagi", me disse Bernardet. "Isso é uma história assim bastante complicada porque o que fui publicado pelo Glauber em entrevistas e no Pasquim, ou às vezes em papo de bar, nunca nos afastou. Nunca brigamos". Na Europa, ao encontrar um amigo de Bernardet, Glauber se justificou: "Se eu não atacar Jean-Claude, vou atacar quem?".
O diretor de "Os Fuzis", Ruy Guerra, afirma que Bernardet é "um crítico que tem peso analítico", mas "não foi decisivo" em sua experiência. "Discordo de certas posições de Jean-Claude. No meu ponto de vista, em ‘Brasil em Tempo de Cinema’ a classe média é um conceito muito esquemático. A análise dele sofre dessas limitações. A classe social de um artista é meio abrangente, também do ponto de vista ideológico, e não se pode fechá-lo num conceito único, marxista", ele opina.
Guerra acrescenta que o pensamento de Bernardet sobre o cinema novo merece ser revisto. "O artista flutua nos espaços sociais, e isso faz com que o artista seja uma metáfora. A metáfora é o que é e mais do que é. O artista é algo mais do que uma classe social, mas Jean-Claude coloca o artista dentro de um conceito fechado, dentro de uma caixa. Ele precisa de uma revisão crítica".
Em 1994, com "O Autor no Cinema", Bernardet reexaminou o conceito de autor de filmes, nascido entre críticos e cineastas franceses e aclimatado no Brasil pelo cinema novo. Nutrindo-se também do questionamento ao autor na literatura, Bernardet esmiuçava as transformações do conceito no tempo e sua validade no cinema contemporâneo. Em entrevista inédita, perto de relançar o livro, agora acrescido de textos de Francis Vogner dos Reis, ele comentou a escolha de Humberto Mauro como precursor dos cinemanovistas engajados na política dos autores.
"Quando o Glauber começa a construir a sua visão de história, ele tem que associar à noção de autor. E esse autor tem que ser encontrado na tradição. O Nelson Pereira dos Santos era impossível, por dois motivos. Primeiro, era um contemporâneo, uma pessoa viva, que montou ‘Barravento’. Além do mais, Nelson não tinha preocupação autoral. Era inviável que o Nelson pudesse ser um ícone pro Glauber", ele avaliou.
A obra crítica de Bernardet "é mais prolífica do que a de Paulo Emilio, mas desconcerta o observador por sua tendência a recusar um aprimoramento progressivo das posições e dos métodos em prol de uma mudança permanente, de uma ruptura constante consigo mesmo", analisa Mateus Araújo.
O professor da USP lembra que "seu proverbial espírito de contradição por vezes o indispôs com parte do nosso melhor cinema moderno (como no caso do ‘Brasil em Tempo de Cinema’, seu livro mais estruturado junto com ‘Cineastas e Imagens do Povo’), do qual, na verdade, foi um aliado importantíssimo".
"Cineastas e Imagens do Povo", de 1985, discute as tensões estéticas e ideológicas na representação da temática popular em documentários brasileiros dos anos 60 e 70, a exemplo de "Viramundo", "Opinião pública" e "Aruanda". "As imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas sua expressão, e sim a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo", afirmou Bernardet na obra.
O estudo foi concluído antes de ele ter visto "Cabra Marcado para Morrer", de Eduardo Coutinho, documentário reconhecido como "divisor de águas". Em 2003, a reedição atualizada do livro incorporou um ensaio sobre Coutinho. "Cabra resgata os detritos de uma história rompida, de uma história derrotada. Mais do que isso: Cabra é o duplo resgate de uma dupla derrota", disse Bernardet sobre o filme interrompido em 1964 e retomado 17 anos depois.
Alinhado aos renovadores da linguagem, Bernardet era uma presença frequente em festivais de cinema. No Festival de Brasília de 1968, brigou com o crítico Walter da Silveira para premiar "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla. "Defendi ardorosamente ‘O Bandido’. Eu achava que ‘O Bravo Guerreiro’ era um prolongamento do cinema novo, mas o que realmente trazia uma inovação de todos os pontos de vista era ‘O Bandido’", recordou.
"Aquele Rapaz", em 1990, delineou sua investida memorialística na autoficção. Na década de 1990, ele tornou público que era portador do vírus HIV e contou suas vivências com a Aids em "A doença, uma experiência", de 1996. Bernardet enfrentaria uma degeneração macular no olho esquerdo. A perda da visão se agravou nos últimos anos.
Mais recentemente, decidiu não prosseguir o tratamento de um câncer de próstata, incomodado com os efeitos colaterais. "O Corpo Crítico" (Companhia das Letras), de 2021, ampliou a obra de 1996 e expôs sua crítica à mercantilização do sistema médico, que privilegia o lucro, em vez da qualidade de vida, no tratamento indefinido de doenças terminais.
"Vivo num clima de morte, respiro a morte. Não é o câncer. Parte da sociedade quer acabar com o grupo social ao qual pertenço, a opressão me sufoca. Negam o Renascimento e se voltam para uma pretensa Idade Média totalmente inventada, masculina, branca, cristã, despojada de todo espírito crítico e guerreira", afirmou Bernardet em "O Corpo Crítico".
Em 2008, com "FilmeFobia", de Kiko Goifman, Bernardet venceu o prêmio de melhor ator do Festival de Brasília. A partir dessa década, numa virada existencial, ele se dedicou sobretudo à carreira de ator. Desde 1968, atuou em duas dezenas de filmes.
Com Luiz Sergio Person, foi coautor do roteiro de "O Caso dos Irmãos Naves", de 1967. Em 1994, dirigiu o média-metragem "São Paulo - Sinfonia e Cacofonia". Sua cabeça criadora não se resumia ao cinema. Ele também inventou o brinquedo infantil Combina-cor, lançado pela Grow.
Bernardet deixa uma filha, Lígia, de seu casamento com Lucila Ribeiro.
Folha de São Paulo

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