quarta-feira, 16 de julho de 2025

Banana Yoshimoto: ‘A tecnologia é a única esperança que resta para a humanidade’, diz escritora

 





A narradora de Kitchen, romance da escritora japonesa Banana Yoshimoto (pseudônimo de Mahoko Yoshimoto), de 60 anos, que ganha nova edição no Brasil, começa sua história afirmando: “O lugar de que eu mais gosto neste mundo é a cozinha”.



É ali onde ela encontra conforto para enfrentar o luto pela perda da avó, com quem vivia. Pequenas ou grandes, modernas ou antigas, a personagem Mikage ama cozinhas. “Gosto até mesmo das incrivelmente sujas”, continua ela.


Em entrevista ao Estadão, Yoshimoto revela uma proximidade entre os pontos de vista da criadora e sua criatura. “Acredito que as sensações mais vívidas que se pode ter ao ler um texto são aquelas relacionadas à comida. Então, é nisso que eu me concentro”, diz.



No romance, a protagonista Mikage cozinha para o amigo Yuichi e sua mãe Eriko, uma mulher trans. Ela transforma a rotina da mãe e do filho ao preparar deliciosos pratos típicos japoneses. A jovem é acolhida pela dupla do apartamento depois da morte de sua avó.


Durante uma viagem de trabalho como assistente de uma chef, ela experimenta uma receita deliciosa de katsudon, prato de arroz servido em uma tigela com carne de porco empanada.


“Ainda que estivesse faminta, eu me considero uma profissional, de forma que podia garantir que aquele katsudon estava perfeito, preparado por mãos realmente habilidosas. A qualidade da carne de porco, o caldo, o ponto de cozimento do ovo e da cebolinha, o arroz cozido al dente… tudo impecável”, conta a personagem.


É neste momento que Mikage pensa em Yuichi e toma um táxi apenas para levar o prato para o amigo provar. Ele, porém, está hospedado sozinho em outra cidade.


“Acho que a qualidade da comida não se compromete muito ao se transportar um katsudon”, brinca a autora sobre a cena. “O mesmo vale para a feijoada”, diz, em referência à cultura brasileira.


“Penso, tarde da noite, qual seria uma comida gostosa, mesmo que não tenha sido feita na hora. Esse foi o tipo de artifício colocado em prática”, explica Yoshimoto sobre os recursos literários usados na sua obra. Recursos que, vale lembrar, despertam um bocado de gula com descrições que remetem ao olfato, paladar e até visão.


Fenômeno da literatura japonesa

Kitchen foi publicado originalmente em 1988, uma estreia que tornou Yoshimoto um fenômeno editorial da literatura japonesa contemporânea. O livro chega ao Brasil quase quatro décadas depois de sua estreia.


A protagonista encontra consolo na cozinha na mesma medida em que o leitor se sente abraçado pela narrativa. A literatura de Yoshimoto é aconchegante como as comidas caseiras e quentes que descreve no seu livro. Não cabe, entretanto, confundir o conforto da ficção da japonesa com literatura tida como banal. Yoshimoto escreve sobre temas profundos, como luto, e contemporâneos, como a fluidez dos gêneros. A autora adota uma linguagem lapidada, mas que não dificulta.


Eriko, a mãe de Yuichi, é provavelmente a personagem mais interessante do romance. Ela é o pai biológico do jovem, que assume sua identidade feminina após a morte da esposa. Há cerca de 40 anos, quando o livro foi lançado, a literatura com personagens queer não era tão popular como atualmente.


O texto foi recebido com muitas críticas quando foi publicado. A sensação era de que os homens deveriam ser mais másculos e as pessoas que se travestem deveriam viver mais discretamente. Hoje em dia, nos centros urbanos, há muitos jovens como aqueles sobre os quais escrevo. Eu imaginava que, com o tempo, a sociedade evoluiria para uma posição mais neutra em termos de gênero. Acredito que isso se tornará cada vez mais realidade, mesmo sem percebermos”, explica Yoshimoto.


Na entrevista, a reportagem informa a escritora de que o Brasil é o país que mais mata a população trans no mundo. A escritora responde que, no Japão, pessoas transgênero também sofrem com o preconceito.


“O mesmo problema existe no Japão, embora não chegue ao ponto de assassinato. Mas o fato de as pessoas serem socialmente apagadas é o mesmo. Acredito que maturidade cultural significa aceitar diversos modos de vida sem criticá-los. Fico feliz que este romance traga encorajamento para aqueles que sofrem com isso hoje em dia”, diz.


A configuração familiar incomum para os padrões tradicionais japoneses é tratada com sensibilidade por Yoshimoto, que evita estereótipos ou descrições exóticas, por exemplo.



Famílias afetivas

A escritora acaba abordando também as diferentes possibilidades de formar uma família, não necessariamente por parentesco. Mikage monta uma família afetiva, mesmo que momentânea, com Eriko e Yuichi. Os distintos tipos de afeto servem como escudo contra a solidão contemporânea.


Para a autora, o mundo atravessa um período de transição entre o patriarcalismo e uma nova forma de configuração.


“Períodos de transição costumam causar muito sofrimento para a humanidade. Mas, de alguma forma, as pessoas encontram um jeito. Um deles é uma rede flexível de amigos e conhecidos. Juntamente com os avanços tecnológicos, vemos um aumento drástico em pequenas comunidades nas quais as pessoas oferecem suporte umas às outras até o fim de suas vidas”, avalia.


Luto é um tema recorrente

Primeiro Miake e, depois, Yuichi, precisarão lidar com o luto. O tema é recorrente na obra da autora. Em Doce Amanhã (Estação Liberdade, 2024), ela narra o mundo dos mortos onde se encontram até mesmo os animais de estimação que morreram.


A edição brasileira de Kitchen também conta com Moonlight Shadow, uma novela em que o luto também surge de forma poética e com uma visão oriental sobre o que ocorre após a morte.


“A percepção de que os mortos estão conosco”, explica a autora, é um tipo de “sensação invisível” e compartilhada pelas pessoas. “Acredito que não há nada mais útil do que a literatura quando pensamos na morte de um ente querido ou na nossa própria morte”, diz.


Além das mudanças sociais das relações humanas, muito mudou nos últimos cerca de 40 anos desde que a obra foi publicada. Uma das mudanças mais nítidas é a tecnologia. Em Kitchen, não há celular. As chamadas telefônicas são em aparelhos fixos. O correio é usado para enviar cartões de mudança, que informam o novo endereço de alguém. É um mundo sem internet.


Mesmo que esse mundo offline cause nostalgia em alguns, Yoshimoto é uma entusiasta da tecnologia. Sua biblioteca pessoal, por exemplo é digital. “Desde que comecei a usar e-books, não preciso mais levar livros grossos de Stephen King quando viajo”, revela.


Acredito que a tecnologia é a única esperança que resta para a humanidade. O desenvolvimento da tecnologia é o único avanço que se direciona a oferecer soluções para questões como as das donas de casa, que assumem todas as responsabilidades de cuidado, locomoção e tarefas domésticas”, completa.


As tarefas cotidianas, aliás, costumam aparecer nas histórias de Yoshimoto. A autora consegue extrair lirismo das coisas simples, tornando cada ato rotineiro uma oportunidade única de estar vivo.


“Quando escrevo um rascunho e o leio novamente mais tarde, percebo o quão banal e superficial é algo que escrevi. Quando reescrevo de uma perspectiva mais elevada, sinto a existência da divindade do romance. É claro que nunca chegaremos a esta posição de divindade, mas acho que a sensação de estar um passo mais perto sempre envolve os romancistas. O mesmo vale para os leitores. Quando tenho uma experiência literária que não entendo de imediato, mas que de alguma forma me atrai, acredito ter entrado em contato com a divindade do romance”, finaliza.


Leia um trecho de ‘Kitchen’

O lugar de que eu mais gosto neste mundo é a cozinha. Não importa onde, de que tipo seja, contanto que seja uma cozinha, um lugar em que se faz comida, eu me sinto bem. Se for eficiente e prática, melhor ainda. Com muitos panos de prato secos e limpos. Azulejos brancos, novos e brilhantes.



Gosto até mesmo das cozinhas incrivelmente sujas. Se for uma repleta de restos de verduras pelo chão, a ponto de deixar preta a sola dos chinelos, e ainda excepcionalmente grande, vou gostar mais ainda. E se tiver uma geladeira enorme e imponente, cheia de comida — o suficiente para passar um inverno inteiro —, com as portas prateadas, eu me apoiaria nela. Ao desviar meu olhar da gordura respingada no forninho e da faca de cozinha enferrujada, vejo pela janela o brilho solitário das estrelas.


Restam apenas eu e a cozinha. Acredito que seja uma ideia um pouco melhor do que pensar que fiquei totalmente só.


Antes de ser acolhida pelos Tanabe, eu passava todas as noites na cozinha.


Tinha dificuldade para dormir em qualquer lugar, não importava onde. Então um dia, ao amanhecer, fui me arrastando de um cômodo para outro, procurando um canto confortável, e descobri que ao lado da geladeira era o lugar em que conseguia dormir melhor.



Kitchen

Autora: Banana Yoshimoto

Editora: Estação Liberdade

Tradução: Lica Hashimoto, Fabio Saldanha e Lui Navarro

176 págs.; R$ 56

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