Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em 'O Globo' e 'Bizz'. Faz um guia para todas as tribos
♪ OBITUÁRIO – “Me deixem cantar até o fim”. O brado de Elza Soares no verso final do samba A mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho) – música-título do apocalíptico álbum de 2015 que reiterou e impôs definitivamente a realeza dessa cantora carioca no panteão da cultura do Brasil – ecoou no início desta semana no palco do Theatro Municipal de São Paulo.
Por capricho do destino, o verso imperativo do samba foi o último cantado por Elza da Conceição Soares (23 de junho ou 22 de julho de 1930 – 20 de janeiro de 2022) em quase 70 anos de vida artística.
Dias após gravar álbum ao vivo e DVD de caráter retrospectivo na segunda e na terça-feira, 17 e 18 de janeiro, Elza Soares se imortalizou, morrendo de causas naturais na tarde desta quinta-feira, dia do padroeiro do Rio de Janeiro, cidade que, há 91 anos e seis meses, pariu essa deusa-mulher de voz inigualável.
Uma voz vinda do morro que alcançou o mundo com a rouquidão do jazz que aprendeu intuitivamente nas quebradas da vida que nunca lhe foi fácil, mas que Elza – dura na queda, como sintetizou Chico Buarque no título do samba composto para musical que biografou a artista em 2000 – domou com unhas, dentes e o suingue assanhado de quem sabia se virar com a lata d'água na cabeça tantas vezes equilibrada nas descidas e subidas do morro.
Elza Soares foi a voz de uma pessoa vitoriosa no planeta fome. A mulher que enfrentou fins de mundo e da própria carreira que driblou altos e baixos até a definitiva consagração com o álbum A mulher do fim do mundo (2015).
Sim, quantas vezes Elza Soares pareceu ter sido enterrada ainda com vida para depois renascer gloriosa das supostas cinzas, tal qual fênix imorredoura, com a voz que arrepiava ouvintes do cóccix até o pescoço?
Ao descer o morro de Água Santa em 1953 para cantar o samba-canção Lama (Paulo Marques e Alice Chaves, 1952), em programa de calouros comandado por Ary Barroso (1903 – 1964) na Rádio Tupi, Elza subiu ao pódio reservado às maiores cantoras do mundo. E de lá nunca mais saiu, mesmo quando pareceu invisível.
Com a bossa negra da voz que encantou Sylvia Telles (1935 – 1966), cantora que lhe abriu as portas da gravadora Odeon em 1959, Elza transcendeu rótulos.
Ao longo dos anos 1960, a cantora encarnou uma diva do samba-jazz na fase da discografia que foi de 1960 a 1973. São dessa gloriosa fase na Odeon álbuns como O samba é Elza Soares (1961), Sambossa (1963), Na roda do samba (1964) e Um show de Elza (1965), além do disco gravado em 1968 com o baterista Wilson das Neves (1936 – 2017).
De 1974 a 1977, destronada pela Odeon (que passou a investir em Clara Nunes) e contratada pela Tapecar, Elza pôs menos bebop no samba e ganhou mais sucessos nas paradas, estourando com Salve a Mocidade (Luiz Reis, 1974), Bom dia, Portela (David Correa e Bebeto Di São João, 1974) e Malandro (Jorge Aragão e Jotabê, 1976).
A partir dos anos 1980, década em que pediu ajuda a Caetano Veloso em momento de desencanto com a música, Elza começou a se libertar do rótulo de sambista geralmente imposto às cantoras negras pela estrutura racista da indústria fonográfica e da própria sociedade brasileira.
Elza Soares jamais deixou de cantar samba, mas adotou atitude roqueira, gravou standard do jazz, fez conexões com Lobão, tomou para si uma música do grupo Farofa Carioca (A carne, gravada por ela em 2002), incursionou pela música eletrônica no álbum Vivo feliz (2003), se misturou com os melhores músicos da cena paulistana do século XXI e se tornou voz militante, abraçando causas do povo negro, da comunidade LGBTQIA+ e das mulheres violentadas pela sociedade patriarcal.
Enfim, Elza da Conceição Soares transcendeu e sai hoje de cena, para a eternidade, como a voz de uma pessoa vitoriosa no planeta fome.
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