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Eis que a controversa história do cantor carioca Wilson Simonal (1938-2000), que já inspirou o documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009), retorna para assombrar discussões sobre racismo e polarização política, dois temas na ordem do dia neste Brasil tragicamente atolado em cíclicos retornos.
A discussão sobre racismo, na história do cantor, é evidente, a partir do seu estrondoso sucesso, nas décadas de 1960 e 1970, levando-o a um patamar de visibilidade, circulação e riqueza nunca igualado por outro artista negro em sua época.
Carismático, talentoso e self made man, Simonal (aqui vivido por Fabrício Boliveira) superou a pobreza e o anonimato, chamando a atenção de um dos mais afinados farejadores de talentos da música brasileira, Carlos Imperial (Leandro Hassum). Logo depois, o cantor abandonou os colegas do antigo grupo musical, os Dry Boys, em nome dessa chance de sucesso solo, que afinal lhe rendeu a carreira luminosa, hits nas paradas de sucesso, programa de TV e contratos milionários de publicidade.
Luxo e riqueza, com direito a vários carrões importados e figurino caprichado ou extravagante, foram sempre sua marca registrada, entregando-se, a julgar pelo roteiro de Victor Atherino, a uma vida de excessos, ao lado da primeira mulher, Tereza Pugliesi (Ísis Valverde), mãe de seus três filhos.
Excessos muito piores cometia a ditadura militar de plantão, ceifando carreiras, quando não vidas, de opositores políticos - inclusive colegas artistas de Simonal, alguns dos quais tiveram de escapar para o exílio, como Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil, ou sentiram pesar a mão da censura aqui mesmo, como Taiguara e tantos outros.
Não se sabe o que pensava Simonal de tudo isso, até porque foram escassas suas manifestações políticas - exceto a composição Tributo a Martin Luther King, composta em parceria com Ronaldo Bôscoli (Rafael Sieg), um bravo manifesto a favor do reverendo combatente pelos direitos dos negros norte-americanos, assassinado naquele ano de 1968.
A homenagem a Luther King, que provocou uma convocação à temida sede do DOPS, em São Paulo, marca o desvio desta trajetória dourada e alienada. Simonal escapa de punições, mas aproxima-se perigosamente de um tipo de convívio com agentes da repressão, aqui representados por Santana (Caco Ciocler), seduzidos pelo convívio com um artista famoso que os convidava a frequentar seus shows.
Que aqueles eram anos polarizados, não se ignora, e é de se estranhar a imprudência, ignorância talvez, de Simonal quanto ao custo deste tipo de aproximação com o submundo da ditadura, um detalhe que certamente não escaparia ao escrutínio da imprensa mais engajada. O gatilho que incendiaria a reputação de Simonal ao longo das décadas seguintes foi, no entanto, acendido por ele mesmo quando, incapaz de controlar seus gastos, suspeitou de que o contador Taviani (Bruce Gomlevsky) o roubava - não lhe bastando a demissão dele, permitindo que os seus amigos do DOPS lhe dessem um “susto”.
O incidente, trágico para todos os envolvidos - exceto para os torturadores do contador, que garantiram sua impunidade - foi detalhadamente retratado no documentário de 2009, que na época trouxe à luz detalhes até ali desconhecidos do episódio. Passados dez anos, o que esta ficção, dirigida pelo estreante em longas Leonardo Domingues, parece pretender é colocar um foco mais amplo no papel que o racismo desempenhou no calvário sem perdão imposto a Simonal, que morreu doente e no ostracismo, em 2000.
Legítima como é esta visão, é fato que falta ao filme uma substância maior para retratar o contexto político da época, bem como aprofundar o perfil humano do próprio Simonal - que teve muitos anos para amargar a punição, nunca anistiada, de seu inescondível erro. Tivesse sido capaz de ir um pouco mais fundo nesses dois aspectos, o filme seria mais potente.
Apesar disso, tem o mérito de recuperar um pouco da figura do artista, não só pela interpretação empenhada de Boliveira, como pela providencial inserção de materiais de arquivo que resgatam alguns momentos simbólicos de sua trajetória - caso de seu dueto com a norte-americana Sarah Vaughn e do mítico show do Maracanãzinho, em que o cantor eletrizou ao vivo cerca de 30.000 pessoas.
Neusa Barbosa
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