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Em tempos conturbados, de crise, nada como revisitar os mestres e seus clássicos. É, portanto, muito oportuna a estreia da versão cinematográfica de A Serpente, último texto publicado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, em 1978, ainda mais potencializada pelo pioneiro encontro na tela entre Lucélia Santos e Matheus Nachtergaele.
A intensidade e contundência do arcabouço dramático de Nelson conduzem a tensão entre o trio de personagens: as irmãs Guida e Lígia (ambas vividas por Lucélia) e Paulo (Matheus), marido de Guida. Vivendo na mesma casa, eles compartilham o drama da virgindade de Lígia, casada com Décio (Paulo Restiffe), um homem impotente que abandonou o lar. Nesse ambiente claustrofóbico e carregado de sugestão incestuosa, como ocorre frequentemente nas peças de Nelson, Guida encontra uma solução para a infelicidade que ameaça levar a irmã ao suicídio: emprestar-lhe seu marido por uma noite, para que a deflore. Mas, suspensa a proibição do desejo entre cunhados, o que pode refreá-lo e ao ciúme e infelicidade, agora atormentando Guida?
Mesmo recorrendo, em boa parte do tempo, a cenários teatrais, o filme, de 2016, incorpora algumas fortes imagens externas que, não previstas, evidentemente, pela peça original, injetam nela um novo sentido, ainda mais contando com a fotografia inspirada de Pablo Baião, num branco-e-preto precisamente iluminado. É o caso das imagens de abertura, tomadas na vila de Bento Rodrigues, região de Mariana (MG), pouco depois do rompimento da barragem do Fundão. A sequência que mostra a destruição da natureza presta-se a uma metáfora perfeita da devastação emocional destas irmãs e dos maridos, esse quarteto perdido entre pulsões velhas como a humanidade de que, desde os gregos, o teatro procura dar conta - e não é pequena a contribuição de nosso maior dramaturgo nas perturbadoras escavações destes mistérios da natureza humana, que a conduzem, não raro, para abismos destruidores, fatalistas, incontornáveis.
A potência da palavra de Nelson Rodrigues ganha uma vida toda própria na precisa atuação destes atores, aos quais se soma, numa pequena participação, Cellia Nascimento, como Dora - e que também interpreta, em momento de luminosa beleza, a canção homônima de Dorival Caymmi.
O que celebra, afinal, A Serpente, senão a potência avassaladora das paixões, contidas artificialmente nas barragens das convenções, moralismos, religiões e preconceitos? Nestes nossos tempos obscuros, o que mais pode reafirmar esta história senão a afirmação da liberdade e da potência da arte, não importando quem sejam seus inimigos?
Neusa Barbosa
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