sexta-feira, 19 de julho de 2019

Filme : DIVINO AMOR


Cine Web


Exibido nos festivais de Sundance e Berlim, Divino Amor, de Gabriel Mascaro, é uma distopia sutil  que interroga de frente o Brasil de 2019. Amparada numa história que começou a ser escrita há 4 anos atrás, a narrativa decola no tempo ficcional de 2027, época em que o Carnaval deixou de ser a principal festa pública brasileira, substituída por uma rave gospel, a Festa do Amor Divino.

Retratando uma sociedade fechada em que o Estado tudo controla através de tecnologias digitais e se proclama laico, apesar de mostrar-se cada vez mais impregnado por uma agenda moralista-religiosa, o filme acompanha os esforços de sua protagonista, Joana (Dira Paes), uma escrivã, para dissuadir os pretendentes a divórcio que a procuram. Profundamente religiosa, a burocrata exorbita de suas funções e procura levar estes cônjuges recalcitrantes a redescobrirem a própria relação, levando-os à Igreja Divino Amor, da qual ela mesma e o marido, Danilo (Júlio Machado), são ativos participantes.

Um dos aspectos mais provocativos deste roteiro, assinado por Mascaro, Rachel Ellis, Esdras Bezerra e Lucas Paraizo, é como esta igreja, assumidamente cristã, se apropria do erotismo em nome da preservação da família, sinalizando para um discurso que se moderniza e se vale da assimilação dos prazeres para concretizar uma estratégia controladora de corpos, mentes e instituições.

Embora qualquer semelhança com igrejas evangélicas não seja descartada, nem mesmo mera coincidência, é muito claro também que o roteiro valeu-se de várias parábolas do Evangelho compartilhado pelos católicos e outros ramos do protestantismo, o que aumenta a ressonância de uma história que procura problematizar a própria adesão à fé. Joana é, afinal, uma mulher que leva sua crença às últimas consequências, violando normas de discrição em seu emprego burocrático para angariar fieis para sua seita, acreditando piamente estar servindo a um plano de Deus.

Uma discussão importante dentro da narrativa é como esta fé é usada para colocar os corpos  a serviço de uma estrutura social que traça um mundo aparentemente sem desvios, um lugar que nega espaço a qualquer dúvida, subjetividade ou mistério - o que não passa de uma tática de controle, inclusive político. Quando se apresenta uma situação controversa na vida de Joana, esta comunidade religiosa que sempre a acolheu mostra uma outra face.

O melhor aspecto deste novo e instigante trabalho do diretor Mascaro (Boi Neon, Doméstica), é o quanto ele acumula camadas de apreensão de realidades complexas, nunca enveredando pelo maniqueísmo, pelo formalismo - tão comum a produções com algum toque sci-fi - e pelo julgamento dos personagens. Por mais que espectadores possam não compartilhar de suas ideias e sentimentos, não se perde de vista a empatia por eles. Tanto que, a todo momento, é possível sentir-se como sentado ao lado de cada um, vendo a vida por seu ponto de vista. Assim é, por exemplo, quando Joana procura convencer um casal que está  junto há 30 anos (Tuna Dwek e Thiago Justino) a desistir da separação. Impossível não ver, especialmente no rosto expressivo de Tuna, toda a ambiguidade da situação, um espelho cristalino da própria fragilidade, o medo do futuro solitário na idade madura e as decepções reprimidas numa relação afetiva que já perdeu o prazo de validade.

Estas nuances de interpretação também aparecem no Pastor (Emílio Mello), o líder do drive-thru de aconselhamento, que teria tudo para assumir um caráter meio vilão. Não é o caso, até porque a opção do diretor é nunca satanizar ou expor seus personagens à caricatura. Assim, toda a sutileza do ator transparece em seus diálogos com Joana, que o procura em seus momentos de questionamento, de crise. Cabe ao Pastor encarnar o esgotamento do modelo fundamentalista em que se baseia toda a vida da escrivã até ali - e Dira Paes é, mais uma vez, uma força da natureza neste retrato complexo desta mulher devota exposta aos limites e contradições da vida plena, fora das amarras e simplificações.
A pior reação a Divino Amor seria, portanto, considerá-lo antirreligioso - o que, evidentemente, pode acontecer, ainda que seja descabido, dadas a complexidade com que se elabora suas situações e personagens e a seriedade com que se compõe suas reflexões, levando o filme a parecer agudamente premonitório de um país assolado pela dificuldade de investigar, sem medo ou preconceitos, um modelo de poder autoritário que usa a religião como estandarte e disfarce para suas incontáveis contradições.

Neusa Barbosa

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