Uma geração Z que se recusa a ser definida por um gênero musical apenas e navega no catálogo sem fim (e sem barreiras geográficas) do streaming por playlists em busca da música que melhor traduza seu estado de espírito. Esta é uma das possíveis explicações (a mais plausível delas, embora longe de ser a única) para a inédita diversidade que caracterizou o ano musical de 2023 no Brasil e no mundo.
Nas plataformas, nas rádios, nas TVs e nos palcos, a ordem foi: tudo é possível e nada é estranho quando se trata de buscar a nova onda ou o novo hit da temporada.
Sim, as paradas globais de 2023 da “Billboard” foram dominadas pelas americanas Miley Cyrus (“Flowers) e Taylor Swift (“Anti-hero”), mas tiveram mais uma vez em seu Top 10 o astro porto-riquenho do reggaeton Bad Bunny e, pela primeira vez, o mexicano Peso Pluma e os colombianos Feid e Karol G. E este ano aconteceu o caso de a primeira música cantada em japonês se infiltrar nessas paradas, “Idol”, da dupla Yoasabi (ou seja, depois do k-pop, o j-pop começa a se tornar uma realidade para o pop global).
— O fato de que gêneros musicais como o reggaeton e de cenas que estão surgindo no Brasil, na Argentina, na Nigéria, em Gana, no Senegal e na Coreia estarem encontrando públicos globais faz o mundo ficar mais alegre musicalmente, mais interessante e, sim, mais dinâmico — analisou, em entrevista ao GLOBO, o diretor global de música do YouTube, Lyor Cohen, que participou este ano da conferência Rio2C.
No Brasil, país em que a diversidade musical rivaliza com a do planeta inteiro, o caminho encontrado pelos artistas para a inovação em 2023 foi o de sair quebrando as barreiras dos estilos, em diferentes e numerosas combinações e projetos artísticos.
O caso mais emblemático foi o do cantor carioca Seu Jorge, que dividiu o show “Irmãos” com a estrela do pagode romântico Alexandre Pires, depois se juntou no palco de um festival de rap ao DJ e produtor Papatinho e ao cantor de trap e R&B Luccas Carlos, em seguida fez com o pianista Daniel Jobim um espetáculo no qual este recriava o repertório do avô Tom Jobim — e no mês que vem apresenta no Festival de Verão Salvador a sua colaboração com Mano Brown, rapper do grupo Racionais MC’s, uma lenda do hip-hop brasileiro.
É uma realidade em que a cantora Ludmilla passou o ano se dividindo entre o funk e o trap (na carreira principal), o pagode (no projeto Numanice) e o pop romântico (nas Lud Sessions, ao lado de estrelas pop como a cantora Gloria Groove). Persona drag queen do paulistano Daniel Garcia, Gloria foi outra que andou zanzando — e em 2023 se juntou, de forma improvável, ao bem comportado sertanejo Daniel na balada romântica “Te amo cada vez mais”.
O ano também viu, nos palcos, empolgados encontros como o de Maria Bethânia e o ídolo indie Tim Bernardes e a musa da MPB pop Vanessa da Mata com o jovem rei do piseiro João Gomes. E, no disco, uma façanha de Rubel, consagrado nome do indie-folk: no álbum duplo “As palavras vol. 1 & 2”, ele conseguiu acomodar participações tão diversas quanto as de Milton Nascimento, DJ Gabriel do Borel (nome do funk carioca em ascensão no exterior), Liniker, Luedji Luna, rapper BK, Bala Desejo, Tim Bernardes, Xande de Pilares, sanfoneiro Mestrinho e MC Carol.
— E a música “Leão”, da Marília Mendonça, que ficou no topo das paradas durante muitas semanas em 2023, é, na verdade, uma regravação do single do(trapper) Xamã, que teve participação da cantora em 2020, e passou de 32 milhões de reproduções no Spotify — diz o editor de música da plataforma de streaming no Brasil Rodrigo Azevedo, lembrando de híbridos de funk e piseiro, como “Não vou te bloquear” (MC Don Juan e Tarcísio do Acordeon) e “Ela pirou na Dodge Ram” (MC Ryan SP e Luan Pereira), que também chegaram alto nas paradas do Spotify no Brasil este ano.
O streaming teve um papel decisivo no cenário misturado da música brasileira, em sua busca por hits que pudessem ser encaixados em diferentes playlists de diferentes gêneros, misturando os públicos dos artistas que faziam feats com outros. Mas os festivais de música — aquecidos em 2023 por toda a demanda reprimida nos meses da pandemia e à caça do público da geração Z — também tiveram grande participação no fenômeno.
Maria Bethânia e Tim Bernardes (no Vozes do Amanhã), Vanessa da Mata e João Gomes, Liniker e Péricles (Doce Maravilha), Criolo e Planet Hemp (The Town), Jão e Pitty (Festival de Verão Salvador) foram alguns dos encontros promovidos ao longo do ano pelos festivais, que ainda ofereceram shows em homenagem a Gal Costa (por Tim Bernardes no C6 Fest e Marina Sena no The Town) e um, muito celebrado, de recriação de “Transa”(1972) por Caetano Veloso com a banda que gravou o disco (no Doce Maravilha).
Outros destaques
Inteligência artificial
Ao limpar uma voz de John Lennon para “Now and then” (derradeira gravação dos Beatles), unir Maria Rita e Elis Regina num comercial e ajudar a criar uma canção fake de Drake e The Weeknd, a tecnologia este ano despertou otimismo e temores acerca do futuro da música.
Fenômenos climáticos e os shows
Da lama no festival Burning Man, nos EUA, e da chuva que atrasou horas o show “Transa”, de Caetano, no Doce Maravilha, ao calor que levou à morte uma fã no 1º concerto carioca de Taylor Swift, 2023 mostrou que algo precisa ser revisto quanto à música em espaços abertos.
A Rainha do Rock Brasileiro foi uma das perdas sentidas num ano em que a MPB também viu partirem João Donato, Carlos Lyra, Leny Andrade, Doris Monteiro, MC Marcinho, Astrud Gilberto e Juca Chaves. E no qual se deu adeus a Tony Bennett, Tina Turner, Sinéad O’Connor e David Crosby.
Com Mick Jagger e Keith Richards rondando os 80, os Rolling Stones lançaram “Hackney diamonds”, primeiro álbum após a morte do baterista Charlie Watts. No Brasil, Paul McCartney, 81, fez uma extensa turnê, e os sessentões Titãs voltaram aos palcos na formação clássica.
Com declaração ao vivo sobre traição do amor que inspirou seu hit (a bossa “Chico”), recordes no streaming (do álbum “Escândalo íntimo”), clipe polêmico (“Campo de morango”), shows lotados e outros vazios, e até um doc na Netflix, não deu para não ouvir falar em Luísa Sonza em 2023.
Dona da música global tanto no streaming quanto ao vivo, Taylor Swift ainda lançou em 2023 o registro de show de maior bilheteria até hoje. E olha que, na onda de filmes-concertos do ano, o seu “The Eras” encarou de frente até um “Renaissance” (que Beyoncé foi a Salvador badalar).
Mexicano, Peso Pluma foi o artista mais ouvido do mundo no YouTube em 2023, ano em que os latinos arrasaram. No Top 10 global do Spotify do ano, estão “Ella baila sola”, de Eslabon Armado e Pluma (5º lugar) e “Shakira: Bzrp Music Sessions, Vol. 53”, de Shakira e Bizarrap (9º). O trap brasileiro mostra os dentes
Embora o sertanejo tenha sido o gênero com mais ouvintes no streaming brasileiro em 2023, o trap veio com força, com MCs como Veigh (foto), cujo álbum “Dos prédios” está no Top 5 do ano no Spotify), Ryan SP (o 3º artista mais escutado da plataforma em 2023) e KayBlack.
Por
Silvio Essinger
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