Folha Press
'Cachorros', do repórter Marcelo Godoy, é grande painel da história do partido
Está chegando às livrarias "Cachorros", do repórter Marcelo Godoy. É um grande painel da história do Partido Comunista Brasileiro, com seu chefe, Luiz Carlos Prestes, ilustrado por um verdadeiro romance policial: a dupla militância de Severino Theodoro de Mello, o Pacato ou Melinho, morto em maio passado, aos 105 anos.
Era um cabo do Exército quando participou do levante comunista de 1935. Cuidou do aparelho onde vivia Prestes, morou na União Soviética, tornou-se um dirigente do PCB e era um contato de agentes soviéticos no Rio.
Essa vida começou a mudar no dia 10 de maio de 1966, quando ele caminhava por Copacabana e foi abordado por um agente do Serviço Nacional de Informações, o SNI (ele era o quarto dirigente contatado pelo serviço brasileiro, ou americano. A clandestinidade do PCB era uma fantasia).
Em 1974 o que parecia uma trégua tácita entre a "tigrada" do regime e o PCB começou a acabar. Pacato, foi capturado na rua, levado para um aparelho clandestino e lá conheceu o capitão Ênio Pimentel, o Doutor Ney.
O jogo era claro: virava informante ou morria. Da casa de Itapevi saiu o agente Vinícius e começou a segunda militância (o cabo José Anselmo dos Santos, colocado diante do mesmo dilema, achou que podia enganar o delegado Sérgio Fleury, até que ele lhe mostrou a notícia de que havia morrido, enquadrou-se e viveu até 2022, quando morreu, aos 80 anos).
Melinho/Vinícius operou sem deixar pistas. Viajou a Moscou. Em 1996, quando um ex-sargento do CIE identificou-o, muita gente não acreditou. Até então, recebeu duas mesadas, uma do Centro de Informações da Aeronáutica e outra do Socorro Vermelho, do PCB.
Marcelo Godoy já havia publicado "A Casa da Vovó", o melhor retrato conhecido do DOI de São Paulo, com seus agentes e execuções. "Cachorros" superou-o (o livro trata superficialmente de outros infiltrados, em outras organizações, que mesmo tendo prestado serviços, não tiveram a penetração nem a durabilidade de Vinícius).
Godoy se move com documentos e segurança por arquivos brasileiros, americanos e soviéticos. Num campo minado por demonizações, ele ouviu comunistas, policiais e militares com o rigor de um repórter.
Manteve o equilíbrio lidando com rivalidades que separaram tanto os serviços do governo como as organizações de esquerda. Salvo o caso da Guerrilha do Araguaia, do qual não trata, Godoy ilumina todos os mistérios dos porões da ditadura e os segredos do Partidão.
Uma de suas melhores fontes foi o ex-sargento da FAB Antonio Pinto, o Doutor Pirilo, ou ainda o pesquisador Carlos Ilich Sanches Azambuja, morto em 2018. Durante três anos, conversaram e trocaram mensagens. Ele foi um dos fundadores do Centro de Informações da Aeronáutica, e Godoy transmite seu veredito:
"Doutor Pirilo contou que o extermínio da cúpula do partido foi uma política que ‘veio de cima’, não era apenas uma cultura de linha de frente; os agentes do CIE ‘cumpriam ordens’. Outros agentes disseram o mesmo."
Severino Theodoro de Mello completou 100 anos em 2017. Saía pouco de seu apartamento em Copacabana. Em junho de 2023, o Exército suspendeu os proventos de capitão reformado que lhe pagava.
E Godoy conclui: "Não deixou uma única palavra sobre eles em suas memórias. Só tratou de seu papel no desmantelamento do PCB ao ser autorizado por Pirilo. Obedeceu ao amigo até o fim. Tinha 105 anos. Sobrevivera a quase todos os que testemunharam a sua história"
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