sábado, 6 de janeiro de 2024

Único tetracampeão mundial morreu nesta sexta-feira, aos 92 anos

 

                                          

Zagallo, durante cerimônia de homenagem na CBF. — Foto: Rafael Ribeiro/CBF 

Por João Máximo

Mário Jorge Lobo Zagallo — como se costuma dizer — era um homem de sorte. Ele próprio se considerava assim, sempre às voltas com todo tipo de raciocínio que justificasse a presença do 13 em sua vida, e não apenas nas costas da camisa que passou a usar em seus últimos anos de técnico. Como jogador, porém, seu número nunca foi esse, mas quase sempre o 11 (7 na Copa do Mundo de 1958). Se é verdade que o homem traça a própria sorte, Zagallo, morto nesta sexta-feira os 92 anos, traçou a sua no dia em que, no juvenil do América, trocou a camisa 10 pela 11.


A história, ele mesmo a contou várias vezes. Em 1948, quando começou, era meia-esquerda. Dois anos depois, tendo assistido como soldado do Exército, em serviço no Maracanã, à derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950, pôs na cabeça que, um dia, ainda vestiria a camisa da seleção brasileira. E por que na ponta e não na meia?


— Com tantos meias geniais no Brasil, as coisas seriam menos difíceis pela ponta — respondeu ele numa das entrevistas a respeito. Menos difíceis, mas não exatamente fáceis. Em 1950, Zagallo já disputou o Campeonato Carioca como juvenil do Flamengo. O ataque: Miguel, Índio, Amarílio, China e ele. Mas o time do Fluminense, no qual Telê Santana jogava no centro do ataque, era, longe, o melhor da cidade. E tinha, segundo as previsões, um ponta-esquerda com mais futuro do que Zagallo. Seu nome: Quincas. Para se ver como os profetas do futebol volta e meia erram feio. A história se repetiria muitas vezes, sempre havendo um ponta-esquerda “melhor” que Zagallo, mas superado por ele na hora da verdade.


Esquerdinha primeiro, e Babá depois, pareciam os melhores do Flamengo, mas quem vestiu a faixa de tricampeão de 1953-1954-1955 foi ele. Canhoteiro e Pepe eram os melhores pontas-esquerdas do Brasil em 1958, mas o primeiro nem foi à Suécia, e o segundo acabou na reserva. De Zagallo. Quatro anos depois, todos apostavam que a vez era, finalmente, do mesmo Pepe, mas de novo a camisa 11 ficou com Zagallo (ele, Nilton Santos, Didi e Gilmar seriam os únicos a participar das 12 partidas da campanha do bi).



"Formiguinha"

Para muitos, sorte. Para Zagallo, reconhecimento. Reconhecimento do futebol que tinha muito do que os treinadores buscavam num jogador: habilidade no drible, precisão no passe, inteligência, disciplina tática. Um ponta-esquerda que, ao mesmo tempo, jogava com cérebro e coração. O já citado Telê Santana, sua réplica pela direita, pois era ponta que ajudava o meio de campo do rival Fluminense, podia ter mais futebol que Zagallo, mas jamais conseguiria impor seu estilo numa posição onde brilhavam, ofensivamente, Garrincha e Julinho. Zagallo, por ter assumido quase por conta própria o papel de ponta recuado em 1958 (salvou um gol em cima da linha na final com a Suécia e ainda marcou o seu lá na frente), pôde dar aos treinadores a opção que prefigurava a 4-3-3, tornando-se valioso coadjuvante ao futebol superior de Didi e Zito no meio de campo bicampeão.


De volta da Suécia, Zagallo trocou o Flamengo pelo Botafogo, pelo qual também seria bicampeão em 1961-1962. Em junho de 1964, substituindo o palmeirense Rinaldo no segundo tempo da partida com Portugal, pela Taça das Nações, no Maracanã, jogou pela última vez pela seleção. Pouco depois, aposentou-se também no Botafogo, para iniciar uma carreira de técnico da mesma forma vitoriosa. Na realidade, um foi a extensão do outro, pois nenhum técnico foi tão repetição do jogador como Zagallo. Seus times só usavam o ponta recuado, e sempre pela esquerda, pelo fato de ter ele sido um ponta recuado, também pela esquerda.


— Sou, por temperamento e vocação, um vencedor — disse pouco antes da Copa de 1994, que ajudou a conquistar como auxiliar técnico de Carlos Alberto Parreira. Em 1970, os papéis se inverteram. Zagallo era o técnico do tricampeonato no México. Parreira, um dos preparadores físicos. Em 1998, novamente como técnico, Zagallo perdeu a final para a França, em Paris.


Nascido em Maceió, em 9 de agosto de 1931, numa família de classe média, Mário Jorge tinha apenas oito anos quando veio morar no Rio. Ele, o irmão mais velho e os pais. A casa ficava em frente à sede do América, na Rua Campos Salles, na Tijuca, de modo que bastou atravessar a rua para tentar a sorte no juvenil do clube. Também na Tijuca, na Rua Barão de Mesquita, estava o Externato São José, onde ele fez ginásio e o científico e fortaleceu as bases de sua formação católica (era homem de rezar todos os dias, devoto de Santo Antônio, convencido, como tantos, de que Deus é brasileiro).


Desde garoto, destacou-se no vôlei, no tênis de mesa e, é claro, no futebol, sua paixão. Neste, apesar do físico franzino (1,68m e 56kg). No colégio, no futebol, em tudo, foi sempre um trabalhador. O que explica o seu estilo de jogador, muitas vezes comparado ao de uma operosa formiguinha. Para os técnicos, foi mesmo o homem-equipe ideal, o oposto do individualista, do craque de exibição, do que joga para a arquibancada. Das mágoas que guardaria de João Saldanha, ao contrário do que se pensa, a maior não tinha a ver com a do técnico da Copa de 1970, e sim com a do jogador de 1958-1962: Saldanha o considerava um zero à esquerda, desfalque do time que entrasse em campo com ele. O trabalho, somado à vocação, levou o craque Zagallo mais longe do que qualquer daqueles pontas “melhores” puderam chegar. Depois do bicampeonato mundial no Chile, Paulo Mendes Campos o definiu num verso: “Minuto a minuto, durante 540 minutos, Zagallo cumpriu o seu dever”. Talvez caiba uma correção em prosa: por 16 anos de bola, o ponta-esquerda Zagallo fez muito mais do que cumprir o seu dever.


O Globo

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