A ONU o considerou equivalente a uma "limpeza étnica". Países árabes afirmaram que não aceitariam a "anexação". O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que fosse bravata. O plano apresentado na terça-feira pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para retirada da população, ocupação e construção de infraestruturas na Faixa de Gaza provocou reações diversas pelo mundo, com especialistas afirmando que seria impossível para Washington levá-lo a cabo sem violar leis, acordos e tratados internacionais — e sem cometer crimes de guerra.
Ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, o republicano afirmou que planeja retirar todos os palestinos de Gaza (uma população de cerca de 2,3 milhões), tomar controle sobre o território (usou o termo “propriedade de longo prazo” para definir o papel a ser assumido pelos EUA), limpar os destroços e retirar os explosivos não detonados da região, para, ao fim, construir uma “Riviera do Oriente Médio” não só para os palestinos, mas “para todos” — sem especificar como se daria a soberania da região e como ficariam os cidadãos retirados. Trump disse que poderia usar os militares americanos para consolidar o plano, embora a Casa Branca tenha se manifestado ontem dizendo que o presidente “não se comprometeu” com “soldados no terreno”.
As reações foram imediatas. O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o plano de Trump equivaleria a uma limpeza étnica. Autoridades de aliados ocidentais de primeira ordem dos EUA, como Alemanha, França, Reino Unido e Canadá, rejeitaram os termos da proposta e disseram, com alguns deles reafirmando o apoio a uma solução com dois Estados. China e Rússia também demonstraram oposição à ideia, com Moscou afirmando que a medida estava “fora de questão”.
No Oriente Médio, a condenação foi geral. A Turquia, sócia dos EUA na Otan, a aliança militar ocidental, classificou a retirada de palestinos de Gaza como uma ideia “inaceitável” e julgou um erro até mesmo “abrir a discussão”. Egito e Jordânia, países sob pressão de Trump para receber os refugiados, também negaram o plano — mesmo pressionados por uma dependência de recursos americanos.
A Autoridade Nacional Palestina, que governa a Cisjordânia, rejeitou a retirada dos cidadãos de sua "terra natal", enquanto o Hamas, ainda no controle de Gaza, acusou o plano de refletir uma "posição racista", alinhada à extrema-direita israelense, com objetivo de deslocar o povo e erradicar a causa palestina. A exceção ficou a cargo do próprio Estado judeu, onde diferentes correntes políticas transitaram entre manifestações discretas e aprovação do plano.
Violação a acordos e crime contra a Humanidade
Se por si só a narrativa alimentada pelo presidente americano valida uma tese que até pouco tempo estava restrita a setores da extrema direita israelense, o plano aparentemente ainda não começou a sair do papel, gerando dúvidas sobre até que ponto ele poderia ser realmente posto em prática. De todo modo, especialistas apontam que, para executar um plano como o indicado, Trump teria que atropelar uma série de convenções internacionais e incorrer em ao menos um crime de guerra.
O especialista em política internacional no Oriente Médio Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais na PUC-SP, afirma que as ações descritas por Trump potencialmente violariam uma série de princípios internacionais estabelecidos desde a Conferência da Paz de Haia, de 1907, quando foram definidos parâmetros como respeito à soberania, a organização política dos povos e igualdade no tratamento entre as nações.
Quando Trump se posiciona retirando os EUA de entidades internacionais, o que ele manifesta é que os princípios do sistema internacional não importam — afirmou. — É preciso entender que ele parte de uma concepção de que tudo isso não vale nada.
Ainda de acordo com o professor da PUC-SP, o plano de Trump violaria diretamente os Acordos de Oslo, obtidos na década de 1990 a partir da intervenção americana, quando Gaza foi reconhecido como um território palestino.
“A escala de tal empreendimento, o nível de coerção e força necessários, daí a gravidade, fazem disso um crime direto contra a Humanidade”, escreveu Janina Dill, codiretora do Instituto de Ética, Direito e Conflito Armado de Oxford, em uma declaração sobre a retirada forçada de pessoas de Gaza.
Tomada de território e limpeza étnica
Washington estaria cometendo uma violação ainda mais grave se a “propriedade de longa-duração” à qual se referiu Trump se convertesse em uma ocupação permanente do território de Gaza. Os detalhes da violação dependeriam em parte de se a Palestina é considerada um Estado, de acordo com Marko Milanovic, professor de direito internacional na Universidade de Reading, no Reino Unidos. As Nações Unidas o reconhecem, mas os EUA não.
— A proibição de um Estado anexar todo ou parte do território de outro é um dos princípios mais importantes e fundamentais do direito internacional. Há uma regra clara — disse Milanovic, em entrevista ao New York Times, acrescentando que, mesmo que não se considere Gaza um Estado, a anexação de território ainda violaria o direito da população civil à autodeterminação.
Para Amaral, a retirada dos palestinos do território configuraria o que os tribunais internacionais chamam de limpeza étnica, um conceito desenvolvido desde as guerras separatistas na Iugoslávia. Embora tenha sua base legal inicial na Convenção para Prevenção ao Genocídio, o crime — que foi reconhecido também durante a guerra civil em Ruanda — é configurado com a retirada total ou parcial de uma população de suas terras por uma potência ocupante. Mesmo que não resulte em aniquilação, quebra o vínculo de um povo com sua terra.
Mandato americano?
A ocupação do território sugerida por Trump remeteram ao pesquisador dois momentos históricos distintos. Se por um lado, a região da Palestina foi ocupada pelo Império Britânico após a Primeira Guerra Mundial, por força de uma designação da então Liga das Nações, para gerenciar a região e reconstruir politicamente as estruturas que sumiram, os EUA protagonizaram uma espécie de governança sobre Iraque e Afeganistão, no começo dos anos 2000, sob o pretexto de fornecer os meios para o país se restabelecer após a guerra.
Mandato americano?
A ocupação do território sugerida por Trump remeteram ao pesquisador dois momentos históricos distintos. Se por um lado, a região da Palestina foi ocupada pelo Império Britânico após a Primeira Guerra Mundial, por força de uma designação da então Liga das Nações, para gerenciar a região e reconstruir politicamente as estruturas que sumiram, os EUA protagonizaram uma espécie de governança sobre Iraque e Afeganistão, no começo dos anos 2000, sob o pretexto de fornecer os meios para o país se restabelecer após a guerra.
A diferença, contudo, é a forma unilateral que Trump sinalizou que pretende adotar neste caso.
— Os americanos se protegeram juridicamente atuando nesses processos de reconstrução com a Aliança do Norte, no caso do Afeganistão, e com uma elite política anti-Saddam Hussein no Iraque. Agora, Trump fala explicitamente de não participação. Esse termo “posição de propriedade de longo-prazo” é um absurdo. É pior que os mandatos da Primeira Guerra. Parece o uso que potências coloniais deram no passado ao argumento da necessidade, para ocupar territórios.
(Com NYT e Bloomberg)
Por
Renato Vasconcelos— São Paulo

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