Arrascaeta é curto e eficaz. É um autor de linhas retas e parábolas precisas. Um toque e a bola entra sem sequer bater na rede — estufa o relógio do juiz sueco
As pirâmides, a esfinge e até a areia do Saara sabem que o Flamengo é absolutamente favorito hoje. Mas duvidar de zebra é, atualmente, atividade tão perigosa quanto pegar carona desavisada em jatinho de empresário. Periga ter um advogado pé-frio lá dentro — e a rapaziada ainda não entendeu que aquilo que chamamos de azar, em futebol, é muitas vezes o carma disfarçado. Imagina o fim do mundo que é viajar tanto pra seu time perder porque um juiz (!) absolveu o Pulgar quando este deu golpe na canela adversária?
O Flamengo não tem nada a ver com esse inquérito — e não ganhou por isso (embora isso não tenha exatamente atrapalhado). Ganhou por talento, experiência e competência — e repetiu a dose contra o Cruz Azul na última quarta-feira. Competência especialmente de Filipe Luís, o samurai educado, que mudou o jogo no intervalo e pôs os cansados mexicanos na roda ao trocar Samu Lino por Plata — e especialmente ao lançar o renascido Everton Cebolinha para dar um passe de Arrascaeta para o Arrascaeta.
Cebolinha andou esquecido como um bandeirinha — e, de repente, não mais que de repente, renasceu como o jogador que valeu quase R$ 100 milhões quando comprado. Voltou a ter velocidade, continua buscando sempre o gol de Robben invertido — mas agora também encontra passes no ponto futuro e desistiu de prender a bola como uma espécie de delegado carente.
E claro que Arrascaeta continua sendo Arrascaeta, o artista minimalista, uma espécie de IA humanizada em campo. Seus movimentos são curtos, quase imperceptíveis, suas soluções são elegantes e fluidas. Ele faz sem esforço o giro que outros humanos desempenham como guindaste mudando de ideia. E simplifica... como simplifica!
O simplificador no futebol nem sempre é valorizado. É como o goleiro econômico — que prescinde do salto, que dispensa a acrobacia. Os holofotes procuram o ornamento, o Deyverson, o entertainer. Arrascaeta é um gênio tímido. O ruído chama atenção — o artista silencioso atua nos atalhos
Arrascaeta é curto e eficaz. É um autor de linhas retas e parábolas precisas. Um toque e a bola entra sem sequer bater na rede — estufa o relógio do juiz sueco — e gera uma infinidade de memes nos quais o autor da obra não aparece. Nada mais adequado. O gol anônimo, quase um haicai de tão singelo, é marca de sua oficina. Sou poeta menor, perdoai.
Se o Flamengo está no Intercontinental hoje — e se tem o sonho de derrotar o poderoso PSG na final — é porque, nas estranhezas do futebol, seu craque discreto não foi globalizado. Dizem que lhe falta potência, força ou alguma das valências que não compreendemos com exatidão. Os torcedores agradecem. Assim ele permanece no Brasil — intervindo pouco, decidindo muito.
Sua economia de movimentos e sua precisão sem excessos de certa forma ecoam o dono eterno do número 10 em vermelho e preto, um certo Arthur Antunes, que em outro tempo conquistou o mundo e se tornou símbolo supremo de um jeito de viver futebol. Giorgian de Arrascaeta obviamente não é Zico — não cometamos heresias. Ninguém nunca escalará esse altar no universo rubro-negro. Mas citar futebolisticamente o maior de todos — ou honrar sua memória em campo — é mais do que suficiente para acomodar o uruguaio como uma espécie de santo acessório no trono do coração torcedor.
Gustavo Poli
O Globo

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