Nesta segunda-feira completam-se exatos 18 anos da morte do poeta do rock Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. O cantor morreu às 8h30 do dia 7 de julho de 1990, após uma noite tranqüila. A causa registrada no atestado de óbito foi 'choque séptico, conseqüência de uma agranulocitose, decorrente da aids'.
O JB Online reproduz o emocionado texto que o jornalista Tárik de Souza publicou na edição do dia 8 de julho de 1990 no Jornal do Brasil:
Com o fio da lãmina bem afiada
O exagerado Cazuza, com suas rasantes na poética da paixão dilacerada, rompeu as farpas da fronteira rock/MPB. Em letras de corrosão lupicinica, este Agenor, quase xará de Cartola, sorveu música ao mesmo tempo em que dissipava a vida em noites que nunca tinham fim (Por que a gente é assim?) lá pelos Baixos da vida. Bem Nelson Cavaquinho da geração rocker.
Sempre auto-irônico, realizou a profecia de 'ganhar pra ser carente profissional'. Alguém capaz de explicitar seduções íntimas: 'Há dias planejo impressionar você, mas fiquei sem assunto. Vem comigo, no caminho eu explico'. Um Morrissey de pele dourada pela tropicalidade, à cata de 'um pouquinho de proteção ao maior abandonado, seu corpo com amor ou não, raspas e restos, mentiras sinceras me interessam'. A devastação afetiva, a relação narcísica especular pós moderna, não poderia ter gerado polaróide mais holográfica. 'Se todo alguém que ama, ama pra ser correpondido, se todo alguém que eu amo é como amar a lua inacessível, é que eu não amo ninguém'. Sem arrego, touché monsieur Lacan.
Em parcerias com o constante (Roberto) Frejat, o periódico doublé de letrista e crítico Ezequiel Neves e os demais barões vermelhos (Guto e os ex-integrantes Dé e Maurício Barros), Cazuza despontou como crooner e ponta de lança da classe de 82 do BRock, a da Blitz, do Paralamas, do Kid Abelha, do Magazine e até do Herva Doce.
A misturadeira do tempo já peneirou esses primórdios, o que só fez ressaltar o lastro do nosso Lou Reed de plantão, nos desvãos da saciedade amorosa: 'Ser teu pão, ser tua comida, todo o amor que houver nessa vida, e algum trocado pra dar garantia'.
Em carreira solo, Cazuza aprofundou os sulcos de suas obsessões, ampliou o leque de parcerias (Lobão, Leoni, Gil, Rogério Meanda) servindo-se com freqüência da dialética das antíteses. 'O nosso amor a gente inventa, pra se distrair e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu'. Mesmo no embalo de uma bossa nova, raríssimo caso de hit retardatário na comemoração dos 30 anos do movimento, ele enfia a faca da dor: 'Digo alô a um inimigo, encontro um abrigo no peito do meu traidor'. Faz parte do meu show.
Acossado pela aids, Cazuza, nos últimos discos, afiou ainda mais o fio da lâmina: 'Eu vi a cara da morte e ela estava viva', lanceteou ele no estilete de Boas novas, do álbum Ideologia. 'Se você quiser saber como eu me sinto, vá a um labortório ou num labirinto, seja atropelado por esse trem da morte', vomitou em Cobaias de Deus (em parceria com Angela Rô Rô), no duplo do testamento Burguesia.
Mas o aço da navalha vinha sendo temperado ao longo de toda a carreira. A erosão de Só as mães são felizes, a que cita os pontos cardeais de sua cartilha poética, de Allen Ginsberg a Rimbaud ('você nunca sonhou ser currada por animais, nem transou com cadáveres'), data de 85. É contemporânea da autópsia em corpo vivo de codinome Mal nenhum: 'Não me chamem a polícia, não me chamem o hospício, não, eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo'.
O poeta terminal, cantor da garganta em chamas e voz sem apuro, sempre exorcizou a própria condição de passageiro da agonia. Quando voltou a lente para as mazelas do país, acionou morteiros no rock enredo Brasil ('mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim') ou abriu a metralhadora em O tempo não pára: 'transformam o país inteiro num p..., pois assim se ganha mais dinheiro. Escancarando, sem economizar conseqüências, locutor impune da indignação no país dos seqüestros industrializados. A geração AI-5, comprimida entre o amor livre e a praga da aids, auto-imolou seu mártir a sangue frio.
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