terça-feira, 24 de setembro de 2019

Filme: A Vida Invisível de Eurídice Gusmão


Cine Web


Em seu sétimo longa, o diretor Karim Ainouz, adaptando o romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, o faz com imensa liberdade e poder de reinvenção. Para o sucesso da empreitada, conta com a visceral cumplicidade de suas protagonistas, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), as duas irmãs que simbolizam tantas das múltiplas faces da feminilidade em perigo, esgarçada por regras, costumes, morais e preconceitos que abatem, em sua época, tantas possibilidades de auto-expressão e livre arbítrio.

Amparado num roteiro em que divide a autoria com Inês Bortagaray e Murilo Hauser, o diretor esculpe diversas faces da repressão ao feminino, numa história ambientada no Rio de Janeiro, em 1950, à qual não falta um mergulho no mundo dos imigrantes radicados no Brasil.

Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler), são duas jovens, filhas de conservadores e rudes pais portugueses, Manuel (António Fonseca) e a submissa Ana (Flávia Gusmão). A ligação profunda das duas irmãs, de personalidades complementares – Eurídice, mais tímida, Guida, mais ousada - é rompida brutalmente quando Guida se envolve com um marinheiro grego, Yorgos (Nikolas Antunes), e parte.

Toda a expectativa do cumprimento de um destino convencional na época, que prevê marido e filhos, recai sobre Eurídice, que tinha outros planos. Pianista de talento, ela se preparava para um exame que a levasse ao Conservatório de Viena. Mas o sonho fica truncado pela conveniência de um casamento com Antenor (Gregório Duvivier), funcionário do Correio e filho de um amigo da família.

Humorista refinado e bom ator, Duvivier injeta em seu personagem tacanho uma humanidade e até um certo afeto de que ele é desprovido no livro. Esta é uma das muitas liberdades a que o diretor, felizmente, se permite, fazendo a história multiplicar-se em muitas direções. Há, em torno das duas protagonistas que, separadas, se procuram, um núcleo de atrizes fenomenais, cujo nome, a partir de agora, teremos que anotar em nossas agendas: caso de Bárbara Santos (como Filomena, figura essencial no futuro de Guida) e Flávia Gusmão (dona Ana), sem contar a participação especial da experiente Maria Manoella (Zélia), transformada por um penteado e maquiagem que escondem seus traços. Na porção final, Fernanda Montenegro comparece, numa participação luminosa que aumenta a voltagem da emoção.

Distinguido pelo principal prêmio da seção Un Certain Regard - inédito para um filme brasileiro - em Cannes 2019 e representante do Brasil para disputar uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro em 2020, A Vida Invisível é um filme grandioso, uma obra sublime que não só expõe o sufocamento das mulheres no Brasil dos anos 1950 como foge do maniqueísmo também ao humanizar os homens que julgam ser seu dever manter estas estruturas patriarcais que, finalmente, também a eles desumanizam e oprimem.
Encharcada de tons vermelhos e verdes, a fotografia da francesa Hélène Louvart é a moldura ideal de uma história em que as sutilezas somam intensidade, evidenciando o ritmo dramático preciso do diretor nesta sua maturidade serena, mas também inquieta. A vida invisível é um primor em suas elipses, em seus não-ditos, em seus saltos temporais, sem que nada se perca, nada sobre fora do lugar e nenhuma pieguice se infiltre. Karim compõe aqui seu melodrama magistral. É o nosso Almodóvar tropical, temperado por um toque do germânico Fassbinder, sem descolar-se da nossa trágica brasilidade.

Neusa Barbosa

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