Foto: LUIS ROBAYO/AFP
"Todos estão piores", diz a manchete de um noticiário. "Comprar sorvete, um luxo", diz outro canal. Os argentinos vivem dias de "terror" devido à disparada dos preços, enquanto o Congresso discute dois gigantescos pacotes de reformas que os deixam "atordoados".
Javier Formoso, de 45 anos, é um deles. “Esperança? Nenhuma. Pelo que começamos a ver, agora começa o terror”, disse, ao caminhar por uma feira de bairro em Buenos Aires.
As medidas discutidas no Congresso? “Já não entendo mais nada”, respondeu Formoso, dando de ombros. “É um ‘salve-se quem puder’.”
O presidente argentino, o ultraliberal Javier Milei, assumiu o governo há mais de um mês esperando enfrentar a inflação com base em dois grandes projetos: um megadecreto e a chamada “Lei Ómnibus”.
Os dois pacotes, juntos, somam mais de mil medidas que buscam revolucionar o sistema econômico argentino levando a ideia do livre mercado a praticamente todos os âmbitos. As normas regulam temas muito variados, como o lítio, o divórcio, a revenda de entradas para grandes espetáculos e as togas dos juízes.
A multiplicidade de regulações gerou também uma infinidade de memes e brincadeiras, como a de um rádio que recentemente “promulgava” a revogação do despertador das 7h da manhã.
O megadecreto está em vigor enquanto não é rejeitado por uma das câmaras do Congresso, e é também alvo de diversos recursos que o acusam de ser inconstitucional.
O projeto da Lei Ómnibus, por sua vez, está sendo discutido a nível das comissões parlamentares e pode ser votado na Câmara de Deputados na próxima semana.
O debate de ambas as iniciativas gera “uma cascata de informações”, afirmou à AFP Belén Amadeo, cientista política da Universidade de Buenos Aires.
E, como, resultado, “há um enorme ruído, um enorme atordoamento ao redor dessas questões, que não está colaborando para que o cidadão médio entenda realmente o que está acontecendo”.
O Congresso e a rua
O constitucionalista Félix Lonigro criticou a extensão do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), apesar de concordar com ele, em parte, porque considera muitas de suas medidas banais.
“Chama minha atenção como Milei acredita que algumas coisas possam ser tão urgente, como a reforma dos clubes de futebol. Acredito que tenha a ver com o personagem, com sua intemperança, sua ansiedade, que se traduz na gestão do governo”, comentou à AFP.
O mesmo pode-se dizer da Lei Ómnibus, cujo trâmite supostamente urgente pode levar semanas ou meses.
E enquanto tudo isso é discutido entre as paredes do Congresso, os noticiários dedicam grande parte de seu espaço a relatar a perda do poder aquisitivo dos argentinos.
Exibem cenas de supermercados, açougues e farmácias, com zooms nos preços dos produtos, e informam as diferenças nos preços das bolas de praias e dos alfajores.
“A única coisa que as pessoas entendem é que os preços estão subindo; todos os demais debates não são entendidos. Querem saber em quanto a alface vai subir, quanto vão pagar de aluguel, quando vai subir o gás, o telefone, a luz”, disse Amadeo.
“A necessidade econômica é muito grande e a instabilidade social e sobretudo a instabilidade emocional é grande”, acrescentou a especialista.
“Temos que resistir”
O próprio Milei contribuiu para essa desilusão ao dizer que os frutos de seu ajuste "serão vistos em 15 anos".
Para começar, desvalorizou a taxa de câmbio oficial em mais de 50%.
A inflação de dezembro é histórica: 25,5%, com um acumulado interanual de 211,4%, o mais alto desde junho de 1991 (200,7%), confirmou o órgão oficial de estatísticas Indec à AFP.
A inflação gerada desde dezembro provocou uma queda de 20,3% nos salários, segundo um relatório da Central de Trabalhadores da Argentina.
Isso significa que, por exemplo, "duas em cada dez pessoas não estão comprando seus medicamentos" devido aos aumentos, afirmou na quinta-feira o ministro da Saúde da província de Buenos Aires, Nicolás Kreplak.
Porém, isso não representa automaticamente uma queda na popularidade de Milei. De acordo com a consultoria Analogías, 49,4% dos argentinos têm uma imagem positiva do presidente, contra 44,8% de imagem negativa, na pesquisa com 2.542 entrevistados em janeiro.
Na mesma feira onde Formoso lamentava, a aposentada Lucrecia Rossi, de 73 anos, preferia ter paciência. "Temos que resistir. Porque é um desconhecido que assumiu", disse à AFP referindo-se a Milei. "Parece que ele tem boa vontade, vamos ver."
Por AFP — Buenos Aires, Argentina
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