Cantora completa 60 anos de carreira em 2025 — Foto: Jorge Bispo
Ainda criança, Maria Bethânia e o irmão Caetano Veloso passavam horas em silêncio, sobre os galhos das árvores do quintal de casa — ela num pé de fruta-pão; ele, numa mangueira —, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Afeita às alturas, a menina anunciou à família, na mesma época, que, quando crescesse, seria artista ou trapezista. “Penso nisso até hoje. Se não cantar, vou para o trapézio. Com 77 anos, mas vou. O palco tem muito a ver com um trapézio sem rede, porque é um desafio. Mas é um desafio luxuoso e comovente”, diz
O tempo, para Bethânia, corre diferente. “Não entendo direito ter a idade que tenho. Às vezes, penso como uma menina de 15 anos”, afirma, logo após reconhecer-se como uma mulher moderna. “Não fiquei parada, não.” As farras da vida boêmia, que duravam até o sol raiar, podem até ter ficado para trás, mas a cantora segue atenta a tudo o que se passa no país e no mundo. Cerca-se de novidades com amigos poetas, compositores e artistas e, desde o fim da pandemia, participa de festivais de música pelo Brasil, experiência que aprecia bastante. No próximo domingo, está na programação do Vozes do Amanhã, no Museu do Amanhã, na Zona Portuária do Rio, num show que terá a participação de Tim Bernardes.
A dobradinha com o artista paulistano tem a ver com a admiração de Bethânia pelos novos nomes da cena musical, sobre os quais fala com entusiasmo. “A música tem se revelado com força, com novas inspirações e maneiras de apresentação. E isso eu gosto de ver”, elogia. Além do próprio Tim, ela já cantou com Liniker e Gloria Groove e, recentemente, gravou a faixa “Em nome de Deus”, com Chico Chico e Maíra Freitas.
Os pés calcados no presente, contudo, sustentam também velhos costumes. Uma cervejinha depois do almoço, quando pode, e a disponibilidade para se apaixonar são alguns deles. Bem-humorada, a cantora desconversa quando questionada sobre namorados famosos, mas fala, de modo contundente, o quanto o estado de paixão lhe é vital. “Eu amo demais. Gosto de estar apaixonada por uma coisa, por uma pessoa, por uma música”, afirma. “Pouco me importa se é homem, mulher, cachorro, periquito ou papagaio.”
A seguir, os melhores trechos da entrevista, feita por telefone.
O GLOBO — Como tem sido participar de tantos festivais?
MARIA BETHÂNIA — Desde o meu show de aniversário, no Vivo Rio (em junho de 2022), com pista livre, gostei de fazer assim. É um pouco a arena em que estreei, misturando público com palco. Então, voltou um desejo de que isso permanecesse. E os festivais trazem isso. Tenho sido feliz.
No show de domingo, convida Tim Bernardes para uma participação. Como é a relação entre vocês?
Ele é um talento inegável. Desde que o ouvi pela primeira vez, fiquei muito impressionada. É doce, carinhoso. Fez “Prudência” para mim. Gravei no meu último disco (“Noturno”, de 2021) e virou a canção mais querida das pessoas. É um bolerão, foge um pouco da novidade do Tim, mas é deslumbrante.
É importante se conectar a nomes da nova geração?
Sim. Acho bonito o movimento que está acontecendo. A música tem se revelado com força, com novas inspirações e maneiras de apresentação. Vejo esses festivais gigantescos, com artistas de fora e brasileiros, e não devemos absolutamente nada aos famosérrimos do exterior. Acho a Gloria (Groove) espetacular. Ela canta divinamente, tem noção de dramaturgia, de teatro. A Liniker tem uma voz linda e canta com naturalidade.
Considera-se moderna, ligada aos anseios atuais?
Olha, o mundo anda tão atrapalhado, que não sei exatamente quais são os anseios. Mas sou ligada, antenada. O Waly (Salomão) dizia que eu tinha uma parabólica escondida dentro de mim. Gosto de ver tudo, me interesso por tudo. Recolho o que mais me apetece e sigo.
De onde vem esse perfil?
Vem de Dona Canô e Seu José (pais de Bethânia), vem de ventre.
O Caetano diz, no livro “Verdade Tropical”, que você era a preferida de Dona Canô. É verdade?
Se eu era a preferida, ela não dava muita bandeira. Sempre achei que, dos filhos de minha mãe (são oito irmãos), a favorita era a primeira, minha madrinha, Clara Maria. Mas minha mãe sempre achou graça em mim. Isso é bom, né? Contam que ela era ótima atriz. Foi a minha primeira diretora no palco.
Já quis estar do outro lado, ser mãe?
Quando tinha 18, 19 anos. Sou muito maternal, por incrível que pareça. Mas sou assim com as minhas amizades. Além disso, tenho meus afilhados, sobrinhos, sobrinhos-netos...
Caetano também fala, no livro, sobre como deve ter sido difícil para você lidar com as tentativas de interferência em seu estilo, quando despontou com o espetáculo “Opinião”. Como foi?
Eram muitos homens, autores machos, e havia um padrão de beleza ao qual eu não correspondia. Felizmente, as mulheres do espetáculo reconheciam em mim outra coisa. Não ficavam olhando se eu tinha narizinho arrebitado, cabelinho touca holandesa. Quem era de teatro viu que eu tinha personalidade.
Como surgiu aquele coque?
Foi inventado por um cenógrafo. Aquilo virou marca. Depois é que soltei o cabelo, porque ficar só no “Carcará” começou a encher meu saco. Parei tudo e voltei para a Bahia. Falei: “Se é para ficar imitando eu mesma, não quero”. Quem me trouxe de volta foi o Guilherme Araújo, para fazer boate e com um repertório sem “Carcará”. Foi a única maneira de aceitar, e falei: “De cabelo solto!”. Aí, exagerei: botei três perucas. Adorava!
O que os cabelos representam para você?
Sempre gostei de mudar. Mas, depois de uma idade, você fica assim: “mexer o quê?”. Já sou uma mulher de 77 anos, não tenho que mudar muito. Tenho a cara da minha idade, o cabelo da cor da minha idade, os gestos da minha idade. Vivo a minha idade.
Como foi manter a obstinação num ambiente tão masculino e machista, desde o começo da carreira?
Batia muito esse lado machista, mas de gente inteligente e doce. O diretor do “Opinião”, Augusto Boal, era um sonho de pessoa. Tinha o Vianinha... Todos eles viraram grandes amigos. Havia mais amor do que indisposição. Nunca lidei com dificuldade para ter o encanto das relações, graças a Deus.
Chegou a enfrentar algum episódio de assédio ou machismo que lhe marcou?
Olha, não dou muita importância para a burrice, a ignorância e a estupidez. Isso não me interessa. Gosto de sentar sozinha, na minha casa, e ter uma surpresa, como ligar a televisão e ver a (pianista) Martha Argerich tocando Chopin. Isso me interessa.
O álbum “Brasileirinho”, que Chico Buarque já definiu como “a ideia de um país possível”, completa 20 anos em 2023. O que acha disso?
É um Brasil que eu conhecia, vivia e amo. Agora, ele está muito abafado, pisado, humilhado. A ignorância que rege o país é complicada, né? Estamos vivendo períodos de mudanças. Temos guerra na atualidade, tantas dificuldades. Não acho que o mundo melhora tão cedo. E é bom saber que temos um Brasil muito puro, ainda um broto, que pode vir a seguir, bonito, do jeito que sempre foi. Mas o planeta tem escurecido, e o Brasil acaba entrando nisso. É o inferno com os indígenas, essa obsessão por dinheiro, por poder e por mídia. Acho tudo isso dramático, trágico. Então, prefiro pensar no Brasil encantado.
Já está preparando um próximo álbum? Haverá algo de “Brasileirinho”?
Não sei dizer. Quis cantar o Brasil assim, mostrar o que a música percebeu do meu país. Agora, é outro tempo. Estou preparando (um novo álbum), sim. Estou recolhendo canções, tenho conversado com os compositores, os que posso, os que me atendem, os que têm prazer em falar comigo e compor para mim. Mas é só para o ano que vem. Ainda não posso falar muito.
Você também tem muitas músicas que evocam a boemia em seu repertório...
É essa coisa de as pessoas se encontrarem, contarem histórias felizes ou dramáticas, dramas do coração. Acho isso lindo.
Viveu isso?
Lógico! Vivi muito bem. Já pintei e bordei (risos).
E ainda toma a sua cervejinha?
Ah, sim. Uma cerveja, de vez em quando, cai bem. Uma geladinha, na hora do almoço. Mas não gosto mais de sair. Tenho horror. Ainda mais de noite, tenho pânico (de sair de casa).
Como uma pessoa que fica tanto em casa mantém uma percepção do país?
Tenho amigos nobilíssimos, grandes poetas, atores, cantores e compositores. Não fico sozinha. Fico em casa, quieta. É outra coisa. Sou interiorana, gosto da minha roda, não gosto de muvuca. Aos 18 anos, brincava com meus amigos, Ítalo Rossi, Aracy de Almeida e Murilinho de Almeida. Passava as noites na farra e voltava de manhã. Trabalhava às 21h e, depois do espetáculo, saía, corria boates, me divertia, namorava. Mas isso não me atrai mais. Para mim, as pessoas não estão tão bonitas como eram. Gosto de ver gente bonita, classuda, elegante. Hoje está tudo muito embolado, e não entendo. A minha casa é quieta, mas é animada.
Como tem lidado com as perdas de amigos? Conseguiu elaborar o luto em relação a Gal?
Não. A morte de Gal me surpreendeu em todos os sentidos. Foi muito cedo, inesperado, e nunca pensei na vida não existindo Gal. Podia não estar com ela, nos falávamos pouquíssimo e não estávamos tão próximas, mas era impossível, e ainda é, pensar que Gal não existe, que Gal morreu. Não é fácil, me dói, me machuca. Do mesmo modo, me machuca muito pensar que Rita Lee morreu. É muito difícil. Não penso muito em morte.
Acha que a sua geração foi importante para a nossa evolução?
Muito. Agora, quanto a definir modelos e estilos, o Tropicalismo foi o grande movedor dessa situação. Então, Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa, Rita Lee, Mutantes, Capinan, Macalé, Waly, acho que eles mexeram com tudo. Mexeram muito bem, muito belamente.
E o que seria esse “tudo”?
Modo de usar o cabelo, de se comportar, interesse musical. Havia uma preocupação com os poetas, com a nossa música mais antiga, com os grandes cantores, os tradicionais, no meio daquelas cabeleiras e fantasias. Isso é histórico, é educação. Então, foram responsáveis, sim. Eu, um pouco afastada. Faço a minha vida um pouco à margem. Vou seguindo e admirando, cantando, participando. Mas meu caminho é mais solitário.
Foi uma época também de descobertas dos alucinógenos. Chegou a experimentar?
Nunca fui desse negócio de droga. Sou medrosa! A cerveja é uma coisa que você compartilha, não é uma bebida solitária. Uma vodca ou um uísque são muito solitários. Ninguém toma um copo de cerveja sozinho, toma com alguém, né? Conversando...
Desde as suas primeiras apresentações, os registros mostram pessoas arrebatadas. Como forjou o seu jeito de cantar e interpretar?
Não forjei nada (risos). Cantava do jeito que sentia, como achava que era certo. Era como sabia fazer. Não criei algo do tipo “agora vou cantar assim ou assado”. Assim é falso, não segura a onda. Vou completar 60 anos de carreira (em 2025). É muita coisa!
O amor tem sempre tem lugar especial nas suas canções. Você ama demais?
Eu amo demais! Gosto de estar apaixonada por uma coisa, por uma pessoa, por uma música. Preciso estar apaixonada por algo, pelo meu jardim, pelos meus bichos, pelo o que for. A paixão é imprescindível para mim.
Sabemos de alguns namorados seus: Antonio Pitanga, Fábio Jr., Jerry Adriani... Era namoradeira?
Você contou três. Eu tenho 77 anos. Então, namorei pouco (solta uma gargalhada).
Mas esses são os que a gente sabe.
Pois é...
O Caetano falou, recentemente, sobre os amores da vida dele, citando as mulheres e “uns caras”. viveu suas relações com essa liberdade?
Lógico! Se eu me apaixonar, pouco me importa se é homem, mulher, cachorro, periquito ou papagaio.
E como vive os amores e a libido hoje em dia? A Vera Holtz nos disse, semanas atrás, que ainda pensam que a mulher vira o “Papai Noel” ao envelhecer.
A mulher não perde a libido. Pelo menos, que eu saiba. Comigo não tem Papai Noel, não (solta outra risada).
O que lhe permitiu chegar tão bem aos 77 anos?
Muito trabalho. Eu me entrego ao que faço, ao que canto, ao que gosto. Tenho a sorte de ter nascido de minha mãe e de meu pai. Minha mãe morreu aos 105 anos. Caetano está com 81, fazendo um show de garoto de 18. Lidar com música, com poesia, eleva um pouco. Tira a gente desse chão meio duro de ser vivido. Se tem poema, você dá uma voada. Quando ouve uma canção bonita, dá um respiro diferente.
Considera os 80 uma idade simbólica?
Não. O que considero simbólico e sempre festejei são meus aniversários de estreia do show “Opinião”, minha estreia profissional. Isso, gosto de comemorar. Idade de nascimento, para mim, não tem essa potência.
Você já disse saber exatamente o seu tamanho, Mas é tratada como diva. Como lida com isso?
É muito bonito, carinhoso e amoroso esse jeito de considerar o meu trabalho como uma coisa fora do comum. Recebo com afeto, mas eu não sento nesse trono.
Por
Eduardo Vanini
Nenhum comentário:
Postar um comentário