quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Morre Antonio Cicero, poeta imortal da ABL, letrista e irmão de Marina Lima: ‘Morrer com dignidade’

 

                                            Antonio Cicero Correia Lima morreu na manhã desta quarta-feira (23) (Foto: ABL, Divulgação)


O poeta carioca Antonio Cicero morreu nesta quarta-feira, 23, na Suíça, aos 79 anos. A informação foi confirmada pela Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual o escritor era membro desde 2017. Diagnosticado com Alzheimer, Cicero optou pelo suicídio assistido, e estava na Suíça, onde a prática é permitida (veja quais países também permitem), acompanhado do marido, o figurinista Marcelo Pies.


“O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia”, ele escreve em sua carta final endereçada a amigos. Ele escreve ainda: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”. Leia abaixo na íntegra, ou aqui.


Além de poeta e imortal da ABL, Cicero foi compositor, crítico literário e filósofo.


Irmão da cantora Marina Lima, o escritor teve a trajetória na literatura cruzada com o universo da música. Escreveu letras de canções como Fullgás e Pra Começar em parceria com a irmã e também colaborou com outros artistas, como João Bosco, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos. Com Lulu, foi coautor do sucesso O Último Romântico.


Cicero começou a cursar filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e, na sequência, estudou no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele, porém, terminaria seus estudos em Londres, na Universidade de Londres, depois de precisar se mudar para a capital britânica em 1969 por problemas políticos.


Ele é autor de diversas publicações de poesia e reflexões sobre a modernidade. Em 1994, em parceria com o poeta Waly Salomão, organizou o livro O Relativismo Enquanto Visão do Mundo (Editora F. Alves), que reuniu conferências realizadas no projeto Banco Nacional de Ideias, promovido pelos dois poetas com intelectuais de importância mundial.


Dentre os livros de poemas, destacam-se Guardar (Editora Record), de 1996, e A Cidade e os Livros (Editora Record), de 2002. Cicero ainda teve o poema Guardar incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (Editora Objetiva) em 2001 e foi finalista do Prêmio Jabuti pelos ensaios filosóficos reunidos em Finalidades sem Fim (Companhia das Letras) em 2005.


Ele lançou, em 1996, o CD Antonio Cicero por Antonio Cicero, em que recita seus poemas, e participou, em 2002, de uma coletânea de quatro CDs feita com nomes como Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant em homenagem a Carlos Drummond de Andrade.


O escritor, poeta e crítico literário Silviano Santiago lamentou a morte de Cicero. Eram bons amigos. Em conversa com o Estadão, Santiago lembra com carinho de quando foi convidado por Cicero para escrever a orelha de seu primeiro livro de poesia, Guardar, de 1996. “Me surpreendeu a alta qualidade. Era uma poesia curiosa, milimetricamente bem pensada e articulada, e sobretudo muito simples”, nota Santiago.


A obra Guardar (que Santiago considera carinhosamente um “afilhado”) foi publicada quando Cicero já estava na casa dos 50 anos. “Um sinal da maturidade dele: tinha uma formação filosófica muito forte e muito segura, e trazia uma nova simplicidade à linguagem poética brasileira. Simplicidade essa que havia sido um pouco vulgarizada pela geração anterior, da década de 1970, conhecida como ‘mimeógrafo’”, analisa Santiago.


O autor destaca, portanto, a forma como Cicero alinhava o conhecimento de poesia ao de filosofia, expondo o complexo com facilidade, como importante contribuição para a poesia literária brasileira. E, logo, muito relevante também para a “vanguarda pop” da época, ressalta.



“Cicero oscila entre a produção de Cazuza e de Caetano. Cazuza tem o que eu chamaria de simplicidade juvenil, de dizer as coisas pelo que elas são. E Caetano não, ele busca dizer as coisas da atualidade da maneira que julga mais conveniente”, pensa Santiago.


Santiago compara a “organicidade na criação artística” apresentada por Cicero e a irmã Marina Lima, que foi sua grande intérprete, à dos também irmãos Billie Eilish e Finneas. “Quando escutei suas músicas pela primeira vez, foi disso que lembrei, e até escrevi para os dois”, lembra. Em agosto, Marina cantou Lunch, música de Billie, em um show.


Deixando um pouco de lado a análise da obra, Santiago compartilha que o gesto final do amigo o deixa arrasado. “Cicero teve de enfrentar a morte de uma maneira quase socrática, como se, de antemão, condenado pela morte. Surge a coragem, que é muito importante na poesia dele. A coragem de um ato elegante diante da inexorabilidade da morte. Essa carta, esse diálogo dele com a morte, vai inspirar reflexões muito profundas, sobretudo entre aqueles que se aproximam desse momento”, considera Santiago.



A elegância, conta Santiago, foi uma tônica da amizade deles. “Mantivemos uma boa e rica amizade durante algumas décadas. Era aquele porto seguro, onde as boas conversas atracam e permanecem seguras e inabaláveis e também inesquecíveis. Nessas condições é que nascem e crescem as grandes amizades literárias e da vida”.


Antonio Cicero no Estadão

Em entrevista ao quadro Leituras Sabáticas, do Estadão, há 8 anos, no lançamento de Porventura, Cicero citou uma “urgência” que sentia em publicar suas reflexões filosóficas. “Para mim, a poesia é mais importante do que o que eu escrevo em prosa. Mas a poesia não precisa ser publicada imediatamente, enquanto os artigos, a impressão que eu tenho, é que é importante publicá-los, até por razões políticas”, afirmou.



Poeta Antonio Cicero morreu nesta quarta, 23, aos 79 anos.

Antonio Cicero: Leia a carta de despedida do poeta, que praticou o suicídio assistido na Suíça

Cicero foi eleito imortal na ABL no dia 10 de agosto de 2017, ocupando a cadeira número 27 e sucedendo Eduardo Portella. “O que é um poema imortal? Um poema imortal é um poema cujo valor não depende de fatores externos a ele: um poema, portanto, que vale por si”, declarou ele em seu discurso de posse.


Imortais da ABL lamentaram a morte de Cicero, em nota enviada pela instituição:


Merval Pereira: “Antonio Cicero é um dos maiores poetas de sua geração. A escolha da morte assistida demonstra sua fortaleza diante da vida. Preferiu morrer a viver sem poder fazer o que mais gostava: ler, escrever, filosofar. Uma escolha corajosa e coerente com o sentido que via na vida. A ABL programara para o final do ano uma homenagem a ele com um espetáculo em que sua irmã, Marina, cantaria suas músicas. Uma homenagem, agora póstuma, a um grande poeta brasileiro”.


Ana Maria Machado: “A perda de Antonio Cicero nos deixa um vazio. Raros, em qualquer cultura, conseguem conjugar o rigor intelectual de um filósofo brilhante com a sensibilidade aguçada de um poeta de primeira linha. Some-se a isso a dignidade moral de um ser humano exemplar. Para não falar no carinho e saudade com que os amigos vamos lembrá-lo. Sempre aprendi muito com ele e vou sentir muita falta”.


Arno Wehling: “É um perda grande para a cultura brasileira e a Academia. Sua sensibilidade e finura intelectual aliavam-se na poesia e na filosofia de modo admirável, envoltas numa permanente elegância de atitudes e expressão”.


Homenagem de Marina Lima

Há algumas semanas, Marina Lima havia publicado uma homenagem pelo aniversário do poeta no Instagram. “Cicero é meu maior parceiro nesses anos todos de carreira, um grande letrista, poeta e filósofo que tenho a alegria de ser irmã”, escreveu na ocasião.


Por Sabrina Legramandi e Gabriela Caputo

Estadão

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