Após 43 anos juntos em novelas, eles estrelam a peça 'Dois de Nós' e avaliam que a Globo perde ao dispensar grandes nomes
Antonio Fagundes, 75, costuma brincar que um bom texto teatral é o que faz o público pensar durante cinco minutos enquanto caminha até o estacionamento, após o fim da peça. "Mas acho que dá para pensar até o jantar. Quem sabe até o dia seguinte. Quem sabe para o resto da vida", diz.
Ao lado de Christiane Torloni, 67, com quem já formou casais marcantes na televisão, ele estreia a peça "Dois de Nós" nesta quinta-feira, no Tuca, em São Paulo. No novo trabalho, Fagundes põe em jogo estratégias já testadas em outros espetáculos, como "Baixa Terapia", que ficou quase quatro anos em cartaz e atraiu 400 mil espectadores em 600 apresentações.
Uma das estratégias são os ensaios abertos, onde o público tem acesso à carpintaria da montagem, incluindo os tropeços e os esquecimentos em cena. Outra são as visitas aos bastidores, possibilidade vendida por um valor extra ao do ingresso. O debate ao fim das apresentações são gratuitos.
Escrita pelo dramaturgo Gustavo Pinheiro —autor também de "A Lista", com Lilia Cabral e Giulia Bertolli—, a peça mostra o encontro de dois casais com 30 anos de diferença em um quarto de hotel, onde debatem o relacionamento entre homens e mulheres.
"São muitas as possibilidades de conversas —quem você foi, quem o seu cônjuge acha que você é, quais esperanças ele tinha no passado", diz Pinheiro. Fagundes não montava um texto brasileiro há 22 anos —o último foi "Sete Minutos", de sua autoria.
A dramaturgia nacional foi um dos fatores que atraíram o diretor, José Possi Neto, para o teatro em prosa, após dez anos liderando musicais. "Aprendi nos meus 51 anos de teatro que, quando você acerta em um texto nacional, o público vem com tudo. Ele se enxerga."
Conhecido por apoiar campanhas eleitorais do PT no passado, Fagundes prefere não falar mais sobre política. "Tem tanta gente falando de governo", diz. "E fazer teatro é fazer política diariamente. Levar 700 pessoas a enfrentar um clima adverso, o trânsito, a violência, sentar em um lugar escurinho, sem poder mexer na maquininha durante uma hora e meia, é revolucionário."
Além de Fagundes e Torloni, o espetáculo tem no elenco Alexandra Martins, 45, e Thiago Fragoso, 42. "Vai ter sempre alguém que vai se identificar com um dos quatro", diz Fagundes. Os temas abordados são atuais e envolvem um turbilhão de sentimentos, mas o texto de Pinheiro não abre mão do humor, uma forma de levar o público para a discussão sem parecer que está em uma palestra.
Torloni vê na peça um relato sobre o processo de descolonização pelo qual as mulheres passam, inclusive em relação aos afetos. "As mulheres nunca estiveram tão donas de suas próprias identidades, sem deixar de ser boas mães, esposas, empresárias", afirma.
"Quando estudei a peça, foi muito bom ver a curva que a Leninha faz", diz Martins, sobre a personagem que interpreta. "Ela é a que mais passa por transformações".
Em um contraponto, Fragoso enxerga o seu papel como uma metáfora para as mudanças que o homem atual precisa viver. Ele começa machista e percebe que terá os sonhos destruídos caso continue assim.
A encenação marca o primeiro encontro de Fagundes e Torloni no teatro, após 43 anos de parceria na TV e no cinema. Eles trabalhavam juntos na série "Amizade Colorida", de 1981, e depois em três novelas e um filme —"Louco Amor", de 1983, "A Viagem, de 1994, e "Velho Chico", de 2016, na Globo, além de "Besame Mucho", lançado em 1987 no cinema. "A vida ensaiou a gente", diz a atriz.
A ideia inicial do casal Fagundes e Martins, produtores do espetáculo, era fazer um filme —plano que não foi descartado. No entanto, uma leitura no Teatro Adolfo Bloch, no Rio de Janeiro, atraiu mais de 400 pessoas, provocou euforia e levou o casal a decidir montar a peça.
Não escapa ao olhar de Fagundes sucessos recentes no teatro, como o de Fernanda Montenegro, que levou 15 mil pessoas para uma leitura de Simone de Beauvoir no parque do Ibirapuera. Para ele, uma das explicações para os teatros lotados hoje é a necessidade de contato humano. A outra é a diluição da televisão.
"A TV não é mais aquela de antigamente, que tinha um cartel de artistas contratados e que se apresentavam novela após novela", afirma. "Onde esses artistas estão agora? Estão no teatro. Acredito que seja também uma busca por eles que faz o público sair de casa."
Fora da Globo desde 2021, após 44 anos de trabalho na emissora, ele afirma que as mudanças são arriscadas e desperdiçam o enorme potencial das novelas. "Um final de capítulo atingia 100 milhões de espectadores. Isso não acontece em nenhum lugar do mundo", diz.
Ele e Torloni têm em comum a sensação de dever cumprido em relação às novelas. "Foram quase 30 novelas, ao menos 20 ficaram para a história da TV", afirma Fagundes. "Não tem nada que me seduza", acrescenta Torloni.
Remakes como "Vale Tudo", marco da teledramaturgia brasileira que teve Fagundes no elenco original, são vistos com desconfiança pelo ator. Ele acredita que é um risco grande refazer uma obra bem-sucedida. Ao mesmo tempo, vê a possibilidade de atualização, com a abordagem de questões atuais.
Além disso, os dois nunca pararam de fazer teatro, mesmo quando viviam grandes sucessos na TV e no cinema. Fagundes incluía nos acordos com a Globo o tempo de dedicação aos palcos, e Torloni diz sempre ter enxergado a TV como uma ferramenta para a formação de público.
São trajetórias que Fragoso, três décadas mais jovem, admira. A possibilidade de atuar com Fagundes o estimulou a voltar ao teatro, após cinco anos afastado. Eles trabalharam juntos em "Amor à Vida", novela em que seu personagem e o de Mateus Solano deram o primeiro beijo gay entre homens na história da teledramaturgia brasileira. "Ele está o tempo todo criando", Fragoso diz, sobre Fagundes. "Tem uma cartilha que ninguém tem".
Fora do elenco fixo da Globo há um ano, Fragoso, contratado desde os 20 anos, afirma que o mercado audiovisual brasileiro está "parado e esquisito". Ao contrário do que declaram muitos quando encerram o contrato com a emissora, ele não viu ainda uma abertura de novos horizontes. "Esse ano deu uma esfriada pesada. Tiraram completamente os investimentos", afirma.
Agora, ele observa restrições de escalação em relação ao seu perfil de homem branco, loiro, de olhos claros e heterossexual. "Em cada novela ou série, eu tenho a chance de fazer um personagem. Ou sou eu, ou o Jonas Bloch, ou o Herson Capri, ou o namorado da Larissa Manoela [André Luiz Frambach]. São loiros de olhos claros. Entrou um, não pode mais ter homem hétero, branco", afirma. "Estamos vendo esse questionamento pela mudança do status quo. Eu tenho uma chance por novela".
Hoje, diz, nem ele nem Solano conseguiriam protagonizar o casal gay de "Amor à Vida", exibida há dez anos. Em paralelo, sobre o trabalho nos palcos, Fragoso afirma que às vezes sente vontade de virar uma mosca na parede só para ouvir as histórias de Fagundes, o que inclui a Companhia Estável de Repertório, empreendimento dos anos 1980 que chegou a ter 60 pessoas contratadas.
A companhia montou clássicos, comédias e peças alternativas, lotando o Teatro Cultura Artística, espaço reaberto recentemente no centro de São Paulo após um incêndio em 2008. As dificuldades financeiras obrigaram o ator e produtor a desmanchar o grupo e a abrir mão de alguns de seus sonhos. "O Brasil castiga quem produz", diz Fagundes, enquanto se prepara para mais um ensaio.
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