sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Dono de tela atribuída a Tarsila do Amaral foi condenado à prisão e tentou ser vereador

 

                                            Filipe Berndt/Filipe Berndt


O empresário Moisés Mikhael Abou Jnaid, proprietário de uma tela que ele alega ser de autoria de Tarsila do Amaral (1886-1973) já foi condenado por roubo e cárcere privado, na década de 1990. Depois, foi candidato a vereador derrotado por três vezes em São Bernardo do Campo (SP) e hoje em dia coleciona dívidas. Neste ano, ele declarou à Junta Comercial morar em um endereço na periferia da cidade.


Procurado, o galerista Thomaz Pacheco, da OMA Galeria, que representa Moisés na negociação da obra, disse não ter autorização para falar sobre a vida privada do empresário. Por mensagem ao GLOBO, ele afirmou: "A vida particular do meu cliente não me diz respeito e não estou autorizado a falar sobre esse aspecto. Moisés não concederá entrevistas por conta de privacidade e segurança". Pacheco também questionou "a relação que a vida particular dele tem com a autenticidade da obra".


A pintura, intitulada “Paisagem 1925”, veio a público em abril, na 20ª edição da SP-Arte, quando teve sua autenticidade contestada por agentes do mercado de arte. Quatro meses depois, a OMA e a Tarsila S.A., empresa responsável pela gestão do espólio da modernista, divulgaram que a autenticidade da tela havia sido verificada por Douglas Quintale, perito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e dono da Quintale Art Law, especializada em certificação de obras de arte. Em abril, a obra surgiu avaliada em R$ 16 milhões, e agora, segundo a OMA, seu preço teria subido para R$ 60 milhões.


O debate em torno da autenticidade da tela colocou em foco uma disputa interna entre os próprios herdeiros da modernista, que teve seu auge no ano passado, quando, em meio a uma disputa judicial, Tarsilinha do Amaral (sobrinha neta da pintora) foi substituída na gestão do espólio por Paola Montenegro, sua sobrinha bisneta. Nesta quarta-feira (21), 28 herdeiros da artista, dentre os quais Tarsilinha, divulgaram uma carta aberta na qual dizem que a obra “não foi submetida ao colegiado do Catálogo Raisonné” (que reúne todas as obras da pintora) e que “não foi legitimamente reconhecida”.


A versão de Moisés e da galeria OMA, que o representa, é de que o quadro ficou no Líbano entre 1976 e 2023 e teria regressado ao Brasil em dezembro, trazido pelo próprio empresário. Ele relata que a tela foi um presente de casamento de seu pai, Mikhael Abou Jnaid, para sua mãe, Beatriz Maluf, em 1960. A obra teria saído do país quando o casal se mudou para o Líbano. Nessa época, Tarsila, que foi casada com Oswald de Andrade de 1926 a 1929, já era uma artista respeitada há décadas. Sua primeira exposição individual no Brasil, para se ter uma ideia, foi em 1929. E o "Abaporu", sua tela mais famosa mundialmente, é de 1928.


Condenação

Moisés, que hoje tem 60 anos, foi condenado pela Justiça de São Paulo em agosto de 1994 a seis anos e quatro meses de prisão, em regime fechado, pelo envolvimento em um roubo.


A pedido do GLOBO, criminalistas analisaram uma certidão sobre a condenação do empresário e seu atestado de antecedentes criminais, ambos emitidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.


— Ao verificar o Código Penal da época, vemos que a tipificação se deu por roubo, com emprego de arma de fogo e participação de ao menos dois agentes, além de sequestro ou cárcere privado e em concurso material, ou seja, com soma das penas do sequestro e do roubo — afirma o advogado Fernando Castelo Branco, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


Para Carla Rahal Benedetti, criminalista e sócia do escritório Viseu Advogados, Moisés pode ou não ter ficado preso.


— A certidão fala em concurso de agentes, ou seja, ele estava com outras pessoas. É um crime muito robusto o que ele praticou e pelo que foi condenado. A condenação determinou regime fechado e houve expedição de mandato de prisão, mas não fica claro se ele ficou preso ou não e por quanto tempo — afirmou.


A sentença transitou em julgado (com decisão definitiva e da qual não se pode recorrer) em 1995.


Eleições e dívidas

Moisés é descendente de libaneses e nasceu em Piraju, no interior de São Paulo, de acordo com documentos pessoais que apresentou à Justiça. Ele foi candidato a vereador em São Bernardo do Campo em três eleições municipais seguidas (2008, 2012 e 2016), mas não conseguiu se eleger em nenhuma delas.



Em sua última tentativa, como filiado ao PHS, declarou à Justiça Eleitoral possuir como único bem 99% das cotas referentes a um restaurante, o Vitoria House, avaliado pelo próprio candidato em R$ 19,8 mil. Em suas incursões eleitorais, o empresário mudou diversas vezes de partido: em 2008, disputou uma vaga na Câmara Municipal pelo PC do B, e em 2012, pelo PSDB. Ainda tentou ser candidato a deputado estadual pelo PP nas eleições de 2014, mas foi considerado inapto pela Justiça Eleitoral.


O restaurante que Moisés afirmou à Justiça Eleitoral ser seu único bem em 2016 foi fechado em janeiro de 2019 a pedido do próprio empresário, de acordo com a Receita Federal, mas deixou dívidas junto ao município de São Bernardo do Campo, que cobra a empresa na Justiça.


Moisés é atualmente alvo de um processo de execução movido pelo município de São Bernardo do Campo desde agosto de 2023, no qual a prefeitura afirma que ele está inscrito na dívida ativa do município e deve R$ 6.711,83. O empresário não se manifestou ainda nos autos.



Em março deste ano, Moisés abriu um novo negócio: uma lotérica no bairro Dos Casa, na periferia em São Bernardo do Campo. O negócio, que tem capital social de R$ 10 mil, está registrado no mesmo endereço em que o empresário declarou morar ao abrir a empresa, de acordo com documentos da Junta Comercial de São Paulo.


Desconhecido do ramo

Em reportagens sobre o caso, representantes de Moisés chegaram a dizer que a família do empresário é da alta sociedade paulistana, ligada às artes e conhecida da família Amaral. Apesar disso, o nome do empresário é desconhecido no setor, de acordo com Jones Bergamin, da Bolsa de Arte, maior casa de leilões do país. O galerista afirma ter convicção de que o quadro não é de autoria de Tarsila.


— Esse proprietário não é conhecido do setor das artes, e não me consta que tenha tido qualquer relação com a família Amaral — diz Bergamin, que foi responsável pela venda de “A caipirinha”, tela de Tarsila arrematada por R$ 57,5 milhões em 2020.


Nesta semana, a Associação de Galerias de Arte do Brasil (Agab) divulgou nota em que afirma não reconhecer a autenticidade da obra em posse de Moisés. Em nota, a entidade diz que “não acata nenhuma conclusão em processos de certificação de autenticidade e autoria de obras atribuídas a Tarsila do Amaral que não tenham participação direta de Aracy Amaral, Vera d’Horta, Regina Teixeira de Barros, Maria Izabel Branco Ribeiro e Tarsilinha do Amaral, que formaram a equipe que realizou a ampla e detalhada pesquisa que resultou na publicação do Catálogo Raisonné da artista em 2008.”

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