terça-feira, 25 de junho de 2019

Trailer "Santiago, Itália", de Nanni Moretti |

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A solidariedade da embaixada italiana em Santiago do Chile em pleno golpe militar de 1973 está no centro do documentário Santiago, Itália, do veterano diretor Nanni Moretti. Conhecido por um estilo pessoal e por, não raro, frequentar seus filmes como ator ou comentarista de passagem, Moretti aqui tem uma participação eminentemente discreta, colocando em evidência o que realmente interessa, ou seja, os depoimentos de diversos personagens que viveram aqueles dias turbulentos em que a democracia foi destruída no Chile.

O filme recebeu dois prêmios na Itália, o David de Donatello de melhor documentário e o Nastro d’Argento para Moretti, este um prêmio concedido pelo Sindicato dos Críticos Cinematográficos Italianos.

Recorrendo a diversos testemunhos e também a eficientes materiais de arquivo, Moretti primeiro reconstitui a atmosfera da chegada ao poder da Frente Popular de Salvador Allende - a primeira experiência de uma frente de esquerda, formada por socialistas e comunistas, chegando ao governo pela via democrática, eleitoral, em setembro de 1970.

Alguns lembram destes primeiros tempos como uma época de alegria - nunca se sorriu nem cantou tanto nas ruas quanto naqueles dias, uma afirmação confirmada por imagens de arquivo. Havia toda uma intenção de utopia, de conquistar educação, trabalho, saúde, moradia para todos os trabalhadores.
Mas, já naquela etapa, os fantasmas de uma elite que se assustava com estas mudanças e da ação imperialista dos EUA de Richard Nixon, empenhado em interrompê-las, depois de ter tentado tudo para impedir a eleição de Allende, já se afiguravam no horizonte.

Não tardariam a materializar-se, sob forma de dinheiro norte-americano fluindo a rodo para a mídia chilena, como o jornal El Mercurio, para erguer-se numa campanha implacável contra o governo, assoberbado pelo boicote de fornecimento de produtos básicos deflagrado por uma indústria que se negava a aceitar o congelamento de preços, visando beneficiar os mais pobres.

Sem pretender julgar os erros e acertos de Allende, o filme ouve aqueles que, perseguidos pelo regime militar instalado após o golpe de 1973, terminaram exilando-se, especialmente através da providencial acolhida proporcionada pela embaixada italiana em Santiago - a última a manter suas portas abertas às dezenas de pessoas que, diariamente, pulavam seus então baixos muros, buscando proteger-se de uma repressão que torturava, matava e desaparecia com os opositores.

Diplomatas italianos que viveram este período, como Piero de Masi e Roberto Toscano, além dos próprios beneficiados, lembram o caos que, às vezes, se instalava nas dependências da espaçosa casa que abrigava a embaixada - que chegou a abrigar cerca de 250 pessoas ao mesmo tempo, entre homens, mulheres e crianças, enquanto eram negociados os salvo-condutos que os levariam ao exílio europeu.

Moretti ouve pessoas como os cineastas Patrizio Guzmán e Miguel Littin, o tradutor Rodrigo Vergara, a artesã e professora Victoria Sáez, o professor Leonardo Barceló Lizana e vários outros que, finalmente, reconstituíram suas vidas na Europa, muitos na Itália - que, nos anos 1970, os acolheu solidária e incondicionalmente, tanto os que foram para a zona rural quanto os que se fixaram em grandes cidades, como Milão ou Módena. Finalmente, aí, evidencia-se a verdadeira intenção de Nanni Moretti ao realizar este filme - refletir sobre tempos em que seu próprio país vivia uma onda de fraternidade e de aceitação de estrangeiros hoje perdida de vista. Um de seus entrevistados, chileno radicado na Itália desde aquela época, fecha o documentário justamente lamentando a mudança de ares.

A Itália de hoje, individualista e consumista, diz ele, lembra cada vez mais o Chile que ele abandonou, corroído pela ditadura, mais de 40 anos atrás.

Sem furtar-se a ouvir “o outro lado”, ou seja, dois militares pró-ditadura - um deles, o ex-general Eduardo Iturriaga, preso por homicídio e sequestro qualificado de opositores do regime -, Moretti realiza seu próprio exercício de tolerância, deixando-os desfiar os habituais chavões de que “apenas cumpriram ordens” e que teriam havido “desvios”, mas não uma política de estado centrada no medo e na morte. E aí ocorre o momento mais pessoal do filme, quando Moretti diz a Iturriaga que “não é imparcial”. Não há, mesmo, como ser imparcial diante de tudo o que Santiago, Itália recupera em seus relatos.

Neusa Barbosa

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