sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Disputa por acervo de Kafka reverbera sua identidade complexa

 

Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

                                             Reuters


Livro de Benjamin Balint convida leitor a refletir sobre a quem pertence o legado de grandes escritores


Concluí recentemente a leitura de "O Último Processo de Kafka" (2018), de Benjamin Balint, livro no qual o autor examina as várias etapas da disputa judicial pelos manuscritos do escritor tcheco de origem judia.


A disputa envolveu as filhas da herdeira do espólio literário de Max Brod, o melhor amigo de Kafka e principal responsável pela preservação dos seus escritos, a Biblioteca Nacional de Israel, em Jerusalém, e o Arquivo Literário Alemão, em Marbach.


O livro é excelente e, além de descrever o processo que teve início em 2007 com a execução do testamento da antiga secretária e herdeira de Max Brod, Esther Hoffe, também traça um rico panorama da literatura judaica em língua alemã durante as primeiras décadas do século 20, nos permitindo, entre outras coisas, conhecer um pouco melhor a obra do próprio Brod, cuja importância foi, com o passar dos anos, reduzida ao seu papel de editor e guardião da reputação literária de Kafka.


Considerado um dos escritores mais prolíficos da sua geração, autor de romances como "A Redenção de Tycho Brahe", Brod deixou a Europa com a esposa no último trem a atravessar a fronteira tcheco-polonesa em 1939.


O casal encontrou refúgio em Tel Aviv, onde, durante 30 anos, Brod atuou como dramaturgo do Teatro Nacional, o Habima. No entanto, ao chegar em Israel, a sua escrita nunca mais gozou do mesmo prestígio alcançado na Europa, pois as preocupações artísticas e intelectuais dos israelenses eram outras e Brod não conseguiu se ajustar ao seu novo círculo literário.


Além de refletir sobre o impacto do exílio e da emigração no destino de Brod, Balint convida o leitor a se questionar sobre a quem realmente pertenceria o legado de um autor como Kafka, cuja identidade literária é complexa e se assemelha à dos híbridos da sua própria ficção, ao exemplo de Gregor Samsa, protagonista de "A Metamorfose" (1915).


Pois, se por um lado, Kafka foi um escritor em língua alemã profundamente influenciado por autores como Johann Peter Hebel, Heinrich von Kleist ou até mesmo Goethe, por outro, ele também foi um artista judeu para quem o estudo do hebraico e a descoberta do teatro iídiche e do folclore judaico do Leste Europeu cumpriram um importante papel nas últimas décadas da sua vida.


Assim, ao ponderar a respeito da disputa entre a Biblioteca Nacional de Israel e o Arquivo Literário Alemão sobre quem deveria ficar com o acervo de Kafka, Balint acaba abordando importantes questões de política cultural. Pois, no caso desse processo, tanto alemães quanto israelenses estavam interessados em usar a obra de Kafka para validar certa imagem.


No caso de Israel, Balint explica que o principal interesse do país seria o de se colocar como o legítimo protetor dos tesouros literários produzidos por judeus, ainda que alguns desses tesouros tenham uma origem diaspórica anterior à constituição do Estado de Israel.


Já no caso da Alemanha, o Arquivo Literário se colocou como uma instituição que falava em nome dos valores universalistas da cultura, dando a entender que, se os manuscritos permanecessem em Israel, Kafka correria o risco de, no futuro, ser tratado apenas como um escritor judeu e não como um dos maiores nomes da literatura europeia do século 20.


Balint argumenta que o interesse da Alemanha pelos manuscritos serviria às tentativas do país em retrabalhar a própria memória com relação ao seu passado recente, em uma tentativa póstuma de reconhecer aqueles mesmos intelectuais judeus que, décadas atrás, foram perseguidos e tiveram as suas obras censuradas pelos nazistas.


Enfim, o processo foi encerrado em 2016 e quem saiu vitoriosa foi a Biblioteca Nacional de Israel. Acredito que a decisão da Suprema Corte israelense tenha sido acertada. Porém, aqui vale a pena ressaltar que essa mesma corte jamais seria capaz de nos ajudar a alcançar um veredito sobre a identidade cultural da obra de Kafka, pois a sua vitalidade reside justamente na maneira como ele soube articular os dilemas relacionados à sua dupla pertença.

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