terça-feira, 11 de junho de 2024

Valter Hugo Mãe mergulha no catolicismo em 'Deus na Escuridão'

 

                                            Eduardo Anizelli/Folhapress

Religião compõe toda a estrutura da linguagem do novo romance do português, sobre dois irmãos na ilha da Madeira



DEUS NA ESCURIDÃO

Preço R$ 69,90 (240 págs.); R$ 49,90 (ebook)Autoria Valter Hugo MãeEditora Biblioteca Azul


Com "Deus na Escuridão", o premiado escritor Valter Hugo Mãe volta a ambientar sua ficção em território português, depois de "As Doenças do Brasil". O romance acompanha a relação de dois irmãos em meio à vizinhança pobre e religiosa na encosta íngreme do Buraco da Caldeira, na Ilha da Madeira.


O narrador é Paulinho, o filho mais velho de Mariinha e Julinho dos Pardieiros. Seu irmão, dez anos mais novo, nasce prematuro e é logo apelidado de Pouquinho, o que dá testemunho das expectativas nele (não) colocadas. Tem saúde frágil e vem ao mundo "sem as origens", ou seja, desprovido de órgão genital.


São personagens com existência bem definida em termos temporais (as ações datam inicialmente de 1981), espaciais (o local de fato existe) e linguísticos. O escritor, nascido em Angola e habitante do norte de Portugal, se disse desafiado pela tarefa de construir literariamente a fala madeirense. Chamam atenção palavras como "buzico", "apupar", "trogalho", "manona", "azoigar", "bilhardar", algumas talvez ouvidas também em outras partes do interior do país.


A narrativa, porém, não é documental e produz o efeito de se estar fora do tempo —o que acaba por gerar uma intrigante questão crítica.


Tanto "Deus na Escuridão" quanto "As Doenças do Brasil", ambientado em uma comunidade indígena fictícia, integram o ciclo "irmãos, ilhas e ausências", que sugeria um percurso de aproximação do autor com temas de interesse histórico. Mas o livro agora lançado não parece levar esse movimento adiante, dada sua centralidade nos afetos, inclusive religiosos.


Os temas não são estranhos à literatura de Valter Hugo Mãe, mas é curioso que, após desenvolver, em torno do estupro de uma mulher indígena, aquele que considera o seu melhor romance, proponha o mergulho em uma mente católica como a de Felicíssimo. Mais: que efetue esse mergulho sem produzir distanciamento.


O capítulo que dá título ao livro cria identificação entre o narrador e a voz autoral. A expressão, aliás, é extraída diretamente daí: "Deus", que, para ele, é como as mães, "está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço".


Felicíssimo experimenta sempre uma alegria divina diante da beleza natural da Madeira e diante do caçula, que passa a representar o centro de sua existência. Do sono compartilhado no mesmo colchão ao apoio que faz de Pouquinho uma espécie de sábio do lugarejo, tudo o primogênito toma como encargo seu.



Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Aos dez anos, é parceiro de trabalho do pai no "fabrico", isto é, na pequena lavoura para subsistência, e se torna também companheiro da mãe nas alegrias e aflições da maternidade.


O trabalho infantil, a pobreza que empurra os ilhéus para o continente ou o exterior, a falta de estrutura pública no local, todos esses elementos estão lá, mas sempre filtrados por um olhar que em tudo vê sacralidade. A religião é não apenas a crença do narrador, mas também a estrutura da linguagem do livro.


Felicíssimo tem sempre um toque de transcendência, procurando o que está além do mundo físico e sentenciando provérbios. "As pobrezas e os temores repartiam-se como por justiça democrática", "amamos mais o que vemos em perigo", "nada fica para sempre, senão a lisura infinita do mar", "Deus guarda para as mulheres um pedaço maior de ternura".


A fé é tão grande que chega a fornecer o meio para justificar aquilo que, na trajetória dos personagens, representa uma afronta à moralidade religiosa. Talvez seja um caminho para compreender de que maneira o livro mobiliza filhos avessos à prodigalidade para pensar o tempo presente.


Mas é preciso saber ler aquém da transcendência para que os aspectos contemporâneos ocupem o primeiro plano: as consequências da malformação do pênis, a aceitação do incomum em comunidades religiosas e a equiparação entre o amor materno e fraterno parecem permanecer, ainda, sob o manto da sacralidade.


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