Eduardo Anizelli/Folhapress
- Professora da UFRJ dedica quase três décadas à molécula que recupera movimentos em humanos
- Cientista equilibra descoberta com burocracia, pressões, limites legais e expectativa pela decisão da Anvisa
Desde criança, a bióloga Tatiana Coelho de Sampaio, 59, dizia que seria cientista quando crescesse. A vocação apareceu antes mesmo do ingresso na vida escolar, alimentada pelo pai —engenheiro, economista e filósofo—, que lotava a casa de conversas sobre matemática, física e filosofia.
"Eu achava fantástico o negócio de átomos, prótons, nêutrons, elétrons. Queria fazer física nuclear", lembra a vencedora do Prêmio Todas na categoria Desenvolvimento e pesquisa, que laurea pesquisadoras e cientistas que conduzem estudos de ponta nas mais diversas áreas de tecnologia.
No colégio a paixão migrou para a biologia, mas a vontade de trabalhar com pesquisa permaneceu. Aos 27 anos, depois de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, Tatiana assumiu uma vaga de professora na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Nesse período, fez estágios de pós-doutorado na Universidade de Illinois (EUA) e na Universidade de Erlangen-Nuremberg (Alemanha).
À época, sua pesquisa estava ligada a bioquímica e biofísica de proteínas, uma área hoje distante daquela que a colocou no centro das atenções neste ano: a polilaminina, substância que se mostrou capaz de reverter lesões medulares em humanos, desenvolvida no laboratório que Tatiana coordena na UFRJ.
A descoberta não foi planejada. "A polilaminina caiu na minha cabeça", diz. Ela conheceu a molécula em 1997. "São 28 anos trabalhando com a mesma proteína, mas não fiquei 28 anos fazendo a mesma coisa. A trajetória é muito dinâmica."
O estudo começou na estrutura da molécula, passou por células, modelos animais, chegou a ratos, cachorros, humanos. Depois, à empresa farmacêutica Cristália, responsável pelo desenvolvimento do remédio, e, agora, ao campo da regulação. "É uma história de saltos: ciência básica, aplicada, translacional, política, empresarial."
O movimento entre áreas, conta Tatiana, foi o maior desafio. "Quando você muda de área, perde legitimidade e precisa provar de novo sua capacidade. Mas eu precisava fazer esses movimentos para acompanhar o desenvolvimento do medicamento."
Ela diz que, nessa trajetória, não enfrentou barreiras profissionais por ser uma cientista mulher. "Na área biomédica somos maioria há muito tempo. O desafio não é representatividade, é conciliar vida pessoal e trabalho."
Tatiana é mãe de três: dois filhos biológicos, de 25 e 21 anos, e uma filha "adotada do coração", hoje com 28. Ela diz que os criou em um lar que define como "acolhedor e barulhento", sempre cheio de jovens. "Sou mãezona. Se tivesse que me definir, seria isso."
Fora do laboratório, afirma que é uma pessoa com hábitos simples. Gosta de cerveja, samba, boteco, nada de restaurantes sofisticados ou roteiros glamourosos. A casa, como seu laboratório, é lugar de circulação constante: alunos, sobrinhos, amigos dos filhos. "A pandemia nem passou por aqui", brinca.
A fama recente, consequência da divulgação dos primeiros resultados clínicos da polilaminina, trouxe orgulho, responsabilidade e uma espécie de dor diária. Tatiana vive sob uma avalanche de mensagens, pedidos de ajuda e lágrimas de famílias desesperadas.
"Quando é lesão crônica, dá pra dizer: espere mais um pouco [o avanço da pesquisa]. Mas quando é aguda, eu sei que se fizer agora vai melhorar. E eu não posso. É torturante."
"Na área biomédica somos maioria há muito tempo. O desafio não é representatividade, é conciliar vida pessoal e trabalho."
Tatiana Coelho de Sampaio
Professora na UFRJ
Ela conta que deixou de atender vários pedidos por causa da impossibilidade legal de liberar o composto antes da aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). "É horrível dizer: 'seu irmão vai ficar numa cadeira de rodas e eu poderia evitar, mas não posso'."
A expectativa agora gira justamente em torno da decisão da agência. Se autorizada a nova fase de estudos, será possível liberar o uso compassivo —quando o médico assume responsabilidade e pede acesso emergencial ao medicamento. Paralelamente, Tatiana conduz um estudo com cães para avaliar efeitos em lesões crônicas, com resultados previstos em cerca de um ano.
Mesmo sobrecarregada com entrevistas, convites, reuniões políticas, aulas, correção de provas, relatórios e experimentos, ela afirma que tem abraçado tudo. "Eu tive o privilégio de ter um reconhecimento que não é só meu. Existe uma demanda da sociedade por ciência, inovação, esperança. Então eu falo em nome de muita gente."
Por isso, senta-se diante de senadores, ministros, do presidente, de quem quiser ouvi-la. Sua lista de queixas é longa: subfinanciamento das universidades, burocracia que trava pesquisas, processos lentos na Anvisa e no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial). "Se me ouvem, aproveito para falar tudo."
Tatiana não tem religião, mas crê em Deus. Acredita, também, que a ciência não detém todas as verdades. "As verdades da ciência são úteis, mas parciais. O ser humano é mais do que um corpo."
Sobre o futuro, ela sonha com algo simples: que o medicamento siga seu curso, que outros grupos assumam novas aplicações da polilaminina e que possa, enfim, trabalhar menos.
"Queria me aposentar e tirar férias de um ano. Mas acho que não vai dar." Até lá, segue conciliando bancada, burocracia, entrevistas, demandas familiares e esperanças alheias. Com a mesma persistência de quem, aos oito anos, achava elétrons "a coisa mais fantástica do mundo".
Folha de São Paulo

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