terça-feira, 27 de agosto de 2024

Como o Rock in Rio espelhou e moldou a música brasileira em quatro décadas de vida

 




Festival, que volta a ser realizado em setembro, influenciou até os sertanejos, que só agora terão espaço nos palcos do evento

Em sua autobiografia "Pra que Serve Esse Botão?", o líder do Iron Maiden, Bruce Dickinson, dedica um capítulo inteiro à primeira edição do Rock in Rio, em 1985. A banda se apresentou na noite de abertura do festival, e Dickinson, que fez metade do show ensanguentado depois de se irritar com uma falha no som e quebrar sua guitarra na própria testa, classifica a apresentação como "um show que fez o Iron Maiden estourar num continente inteiro da noite para o dia".


A descrição sintetiza a potência que o festival, criado pelo empresário Roberto Medina, construiu desde a sua estreia, há quase quatro décadas, quando pôs o Brasil na rota dos megashows de estrelas estrangeiras que hoje fazem residência no país, ao mesmo tempo em que conduzia a profissionalização das apresentações de artistas brasileiros, dos roqueiros que estiveram nos palcos do festival desde o princípio até os sertanejos, que só farão sua estreia na edição deste ano do evento, marcada para o mês que vem.


Por meio da música, o Rock in Rio espelhou momentos importantes da história recente do Brasil. Sua primeira edição aconteceu às vésperas da eleição de Tancredo Neves, o primeiro presidente eleito democraticamente depois da ditadura militar. "Veio aquele momento de muita esperança", diz Maurício Barros, um dos fundadores do Barão Vermelho, que se apresentou na noite do pleito que elegeu Tancredo. Cazuza, que integrava o grupo, terminou de cantar "Pro Dia Nascer Feliz" desejando "um Brasil novo, com uma rapaziada esperta".


A sensação não foi muito diferente do que aconteceu na última edição, há dois anos, às vésperas das eleições que levaram Lula de volta ao Palácio do Planalto, com protestos sobretudo contra Jair Bolsonaro, de artistas nacionais, como Ivete Sangalo, a estrangeiros, como o Green Day.


Como Dickinson, Barros se lembra do público daquela noite de 1985 como o maior para o qual a banda havia tocado até então. O rock brasileiro estava em ascensão, com o line-up do festival formado também por Os Paralamas do Sucesso e Kid Abelha. Na edição seguinte, em 1991, no Maracanã, houve ainda shows de Capital Inicial, Titãs e Lobão.


Bi Ribeiro, baixista do grupo Os Paralamas do Sucesso, diz que o festival foi o principal espaço de amadurecimento do rock brasileiro. "A gente estava muito atrasado em termos técnicos. Muitos artistas reclamavam do som, mas as pessoas não sabiam usar aquilo. Tudo era muito moderno."


Não que a relação do festival, e também do público, tenha sido sempre boa com os artistas brasileiros. Na primeira edição, Herbert Vianna, líder dos Paralamas do Sucesso, deu uma bronca na plateia, que os vaiava enquanto esperavam para ver nomes como Freddie Mercury com o Queen, Rod Stewart, Ozzy Osbourne e o grupo AC/DC.


A terceira edição do festival, em 2001, foi marcada pelo boicote de diversas bandas brasileiras, sob a liderança do grupo O Rappa, por uma cláusula contratual que os impedia de passar o som para a regulagem final dos instrumentos.


Mas hoje os conflitos são só história, e os brasileiros terão um dos sete dias do evento só para eles. É o chamado "Dia Brasil", com shows divididos por gêneros, contemplando da música clássica ao rap.


Os headliners dos outros dias são Travis Scott, Imagine Dragons, Avenged Sevenfold, Ed Sheeran, Katy Perry e Shawn Mendes. Eles encabeçam um line-up formado por 750 artistas e estão entre os quase 4.000 nomes que já se apresentaram ao longo das 24 edições do evento desde 1985.


Além da capital fluminense, o Rock in Rio passou por Lisboa, Madri e Las Vegas, nos Estados Unidos. Nas últimas décadas, também se profissionalizou. Um dos marcos foi em 2011, quando a Cidade do Rock foi construída de forma permanente, para edições bienais do festival, que se tornou um "parque temático da música", com brinquedos e estandes, afirma o seu CEO, Luis Justo.


De fato, há muito além de música no Rock in Rio e também nos outros festivais dos mesmos organizadores, como o The Town, que estreou em São Paulo no ano passado, e o Lollapalooza, também na capital paulista, que teve sua primeira edição sob a batuta da empresa comandada por Roberto Medina neste ano.


A presença desses elementos às vezes é tamanha que se torna um alvo de críticas de parte do público por dominar o espaço, como aconteceu no The Town. Justo diz que, no próximo Rock in Rio, "as pessoas certamente poderão circular com mais facilidade".Medina acrescenta que, sem os patrocinadores, é impossível pôr de pé toda a estrutura necessária para um festival desse porte —a organização estima que o investimento da próxima edição gire em torno de R$ 1 bilhão.


A presença dos patrocinadores, aliás, foi um dos motivos que levaram ao cancelamento do evento em Las Vegas. Na cidade americana, o Rock in Rio reuniu astros como Taylor Swift e Metallica, mas não deu lucro o suficiente e acabou cancelado depois.


"A conversa com patrocinadores americanos é muito difícil. Os caras são soberbos. 'Um latino não pode fazer o maior evento do mundo', eles pensam. Então eu tirei o pé de lá", disse Medina, ao realizar o festival em Lisboa, no último mês de junho.


Críticas e discussões mercadológicas à parte, há muitas novidades na próxima edição, afirma Justo. Uma delas é o Global Village, uma área com restaurantes, shows e reproduções de construções que são símbolos arquitetônicos mundiais, como o Taj Mahal.


Os palcos também serão diferentes. O palco Mundo, onde se apresentam as maiores atrações, recebeu novos telões de LED. Agora serão seis, o que promete melhorar a experiência do público que vê os shows mais distante dos artistas.


O palco Sunset, até então tido como secundário, foi reestruturado e agora está do tamanho do palco Mundo. Também mudou de lugar, para receber multidões de maneira mais confortável em shows de estrelas como Mariah Carey, Tyla e o grupo Deep Purple. "A partir dessa edição, está claro para todo mundo que a gente tem dois palcos principais no Rock in Rio", diz Justo, lembrando ocasiões em que apresentações de superestrelas nesse espaço, como a de Ludmilla na última edição, causou comoção nas redes sociais.


O palco Supernova, criado há cinco anos, também estará em uma nova localização. Rappers como N.I.N.A. e Duquesa e bandas como Crypta e Dead Fish se apresentarão nessa área, que fará parte de um complexo que incluirá também o Global Village, o Espaço Favela e o palco eletrônico, o New Dance Order. A grama sintética e os banheiros também foram renovados, em investimentos que mostram por que, mesmo após quatro décadas e o surgimento de outros megaeventos, o festival continua sendo o maior da América Latina.


Colaboraram Guilherme Luis e Pedro Martins

Amanda Cavalcanti

Folha de São Paulo

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