segunda-feira, 1 de julho de 2024

Como Lily Gladstone usa a fama do Oscar e impulsiona cultura indígena nos EUA

 



O RITO DA DANÇA- Disponivel Apple-16 anos


Um ano depois de marcar a história do cinema ao se tornar a primeira atriz indígena a vencer o Globo de Ouro e a ser indicada ao Oscar de melhor atriz por seu papel em "Assassino da Lua das Flores", de Martin Scorsese, Lily Gladstone está de volta às telas, estrelando "O Rito da Dança", da Apple TV+.


Dirigido por Erica Tremblay, o filme acompanha Jax, interpretada por Gladstone, que vive na reserva indígena seneca cayuga, no estado americano de Oklahoma, e passa a cuidar da sobrinha quando sua irmã desaparece. A narrativa é sensível para a atriz, que não só tem usado sua voz para discutir os conflitos envolvendo os indígena nos Estados Unidos, como nasceu e cresceu em uma reserva, a de blackfeet, no estado de Montana.


Jax não tem um histórico criminal limpo, por causa de pequenos furtos que comete em lojas de conveniência. Por isso, corre o risco de perder a guarda da menina. Ao mesmo tempo, ela sai no encalço de pistas do sumiço da irmã, que parece estar relacionado à criminalidade que existe dentro da comunidade, vulnerável e isolada.


Usando uma saia preta de rendas coloridas, Gladstone, que participou do júri do Festival de Cannes, diz que se inspirou no primo para a personagem. "Ele fez escolhas questionáveis, mas necessárias, dadas a circunstâncias em que estava quando jovem", afirma, sobre a vida que o rapaz teve antes de trabalhar no programa de revitalização de búfalos da reserva. "Existe um ponto na vida em que você vira tio ou tia, percebe que tem crianças te observando e então pensa que precisa ter algo para ensinar."


Essa é a filosofia que move a atriz, de 37 anos. Ao ser questionada sobre como foi sua imersão entre os seneca cayugas para fazer o filme, ela se anima, imaginando crianças da comunidade assistindo ao longa e corrigindo possíveis erros seus de pronúncia. "Eles estarão falando sua língua fluentemente e por escolha própria", afirma. Hoje, a língua seneca cayuga corre o risco de sumir por ter não mais do que 20 falantes.



Gladstone diz estar bem familiarizada com as tradições que Jax ensina à sobrinha no filme. "Identificar plantas e colher, isso tudo fez parte da minha infância. Costumávamos reunir ingredientes para alguns de nossos idosos", lembra.


Foi naquela época que ela começou a atuar no Missoula Children’s Theatre, programa itinerante de teatro infantil, e percebeu que as morais das fábulas ocidentais eram diferentes daquelas de seu povo. Depois, a dinâmica competitiva e caótica das seleções de artistas em Nova York a desanimaram.


"Muitos papéis que fiz antes de ter uma carreira no cinema eram baseados no [método do] Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Esse tipo de trabalho é para que as comunidades oprimidas criem histórias baseadas em suas experiências difíceis e criem um mundo imaginário, pelo qual possam lutar", diz.


Antes da pandemia, Gladstone solidificou seu nome no cinema independente em produções como "Certas Mulheres", em que contracena com Kristen Stewart. No entanto, com a Covid-19 e a paralisação do circuito, ela considerou desistir da carreira de atriz e se inscrever em uma vaga numa empresa que trabalha com proteção de abelhas.


Tremblay, a diretora, que tem ascendência seneca cayuga, lembra como ficou impactada quando assistiu a "Certas Mulheres" e viu Gladstone pela primeira vez. "Vi seu rosto e pensei ‘meu Deus, ela é indígena?’", conta. "Com um olhar ou mexida de sobrancelha, Lily consegue contar a história de milhares de emoções."


Foram os olhos carregados e a expressão ambígua de meios sorrisos que renderam a Lily Gladstone a indicação ao Oscar pela dilacerante interpretação de Mollie em "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese.


Sua personagem é enganada pelo marido, vivido por Leonardo DiCaprio, que está envolvido na onda de assassinatos que assombrou a comunidade osage no século passado, mas não encarna o estereótipo da indígena heroica. Ela sofre e adoece, mas também é astuta e irônica —isto é, o oposto de indígenas que são incluídos nos filmes só para sofrer violências.


Mesmo perdendo o Oscar para a performance de Emma Stone em "Pobres Criaturas", 2 mil indígenas de diferentes lugares dos Estados Unidos se reuniram para celebrar a indicação de Gladstone e a de Scott George, que fez a trilha do filme de Scorsese.


A reação é sintomática de um oeste americano que não foi justo com as populações indígenas nem na realidade, nem na ficção, onde foram limitadas a papéis em faroestes na era de ouro de Hollywood. Em 1973, Sacheen Littlefeather chegou a ser vaiada quando subiu ao palco da cerimônia para criticar a representação dos apaches feita pela indústria americana.


Se "Assassinos da Lua das Flores" exorcizou a culpa histórica dos americanos pelo genocídio dos povos originários com um épico, "O Rito da Dança" promove um olhar delicado sobre a complexa vida dessas populações nos dias de hoje. Jax e Rocky encontram acolhimento uma com a outra, algo comum de acontecer entre mulheres indígenas, segundo a atriz. "É uma história de amor matrilinear", diz Gladstone. Assim como na cultura blackfoot, ela afirma, a linguagem não separa a família em categorias.


"Tias e tios são uma extensão dos pais. É um jeito de manter todos próximos e a nossa visão de mundo", diz a atriz. Ela lembrou que a maioria das línguas indígenas não têm gênero quando se reconheceu como uma pessoa não binária, mas que também usa pronomes femininos, no começo deste ano. Em sua família, todos se reuniam com entusiasmo na casa da bisavó —de quem ela herdou o nome— para ouvir as histórias de vida da idosa.


Gladstone precisou aprender algumas palavras em seneca cayuga para o filme, o que ela considera um esforço de atuação a ser reconhecido assim como acontece quando um artista europeu ou americano faz um filme em outro idioma, como quando a alemã Sandra Huller foi celebrada no ano passado por sua atuação em francês e inglês em "Anatomia de Uma Queda".


Com todo o frenesi entorno de seu sucesso, Gladstone não cansa de dizer em entrevistas e podcasts que o reconhecimento de indígenas pela indústria audiovisual chegou atrasado. Para ela, é estranho e sintomático que os povos nativos, contadores de histórias originários, tenham ficado tanto tempo sem representação nas telas.


Quando ganhou o Globo de Ouro, a atriz começou seu discurso em blackfoot, língua que sua mãe insistiu para que fosse ensinada na escola da reserva. "Nessa indústria, atores indígenas costumam recitar suas falas em inglês", disse Gladstone, diante da plateia eufórica. "Digo isso para cada criança indígena que tem um sonho e se vê representado nas historias contadas por nós e nas nossas próprias historias."


Alessandra Monterastelli

Folha de São Paulo

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