domingo, 16 de junho de 2024

Por que livros-jogos voltam a ser mania envolvendo leitor em enigmas e aventuras

 

                                           Detalhe da capa do livro 'A Mandíbula de Caim', 


Ir da primeira à última página de "O Porão" é a única escolha que o leitor não pode fazer.


Com seus rumos ditados por decisões propostas ao fim de cada capítulo, exigindo que o volume seja folheado num vaivém incessante, a obra de Vítor Soares e Giovanni Arceno publicada pela editora Record dá novo fôlego aos livros-jogos, um gênero que fez sucesso entre os anos 1980 e 1990.


É a interatividade que reina nas narrativas, que vão do suspense à fantasia e podem chegar além da leitura, incluindo o rolar de dados e fichas de personagem típicas dos RPGs.


O gênero engloba os quebra-cabeças literários, nos quais dá para desvendar charadas, protagonizar uma espécie de jogo de tiro em primeira pessoa —como na série "Combat Heroes", de Joe Dever— ou mesmo explorar a fundo a ditadura militar brasileira, como em "O Porão".


Neste lançamento, o jogador-leitor encarna uma estudante que tenta resgatar uma colega de guerrilha do prédio do sinistro Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo.


No início do livro, os autores situam o enredo em 1968, logo após a publicação do Ato Institucional nº 5, mas ressaltam que, para garantir melhor jogabilidade, se permitiram algumas licenças poéticas perante os fatos.


"Um dos principais intuitos do livro é ser educativo. Por isso todas as alterações que fizemos foram pragmáticas", diz Arceno. "Reduzimos o número de andares do prédio do Dops, por exemplo. Mas nos preocupamos em manter o espírito do que estava acontecendo."


Inspirados pela coleção "Aventuras Fantásticas", de 1982, de Ian Livingstone e Steve Jackson, os autores dizem que foi preciso fazer um malabarismo entre técnicas para chegar ao resultado. "Não poderia pesar na literatura, assim como não poderia pesar na história para não ficar muito acadêmico, nem em mecânicas de RPG para ser inacessível a quem não conhece o gênero."


Os autores também refletem sobre a convivência deste formato físico com a predominância das telas. "Os produtos analógicos s empre vão existir em convivência com os digitais. Exploramos ao máximo a experiência offline no livro para mostrar que existem técnicas e formatos possíveis."


Como prova dessa magia do papel, um título que gerou repercussão nas redes foi "A Mandíbula de Caim", escrito em 1934 pelo britânico Edward Powys Mathers, sob o pseudônimo de Torquemada, e republicado pela editora Intrínseca no ano passado. É um enredo complexo que aborda seis assassinatos, mas a ordem das 216 páginas é aleatória.


Na nova edição, as páginas são destacáveis e, segundo a editora, até agora só três brasileiros conseguiram decifrar o enigma. No TikTok, leitores tentam montar as peças com a ajuda de marcadores de texto e notas adesivas coloridas, enquanto outros promovem forças-tarefas entre grupos de amigos colando todas as páginas numa parede, como um detetive de filme.


Para a editora de aquisição da Intrínseca, Marina Ginefra, o furdúncio em torno do livro nonagenário se liga à experiência quase mística de desvendar o mistério e pertencer a um seleto grupo. "Os livros interativos, para funcionarem, precisam instigar o leitor", afirma.


Ela compara o fenômeno a outro título, que vendeu mais de 1 milhão de exemplares, "Destrua Este Diário" —que não é necessariamente um jogo, mas subverte o suporte e incentiva o leitor a rabiscar, rasgar e até levar o livro para o banho. "Eles proporcionam uma nova relação entre a obra e quem está lendo, fazendo com que os leitores possam se sentir parte da história."


Na visão do diretor editorial da Record, Cassiano Elek Machado, não há uma disputa direta entre as redes sociais e os livros-jogos. "Existem até projetos híbridos, que incluem elementos tecnológicos na trama, como em ‘Crimes Ilustrados’, no qual, para resolver alguns enigmas, é preciso acessar QR Codes."



Susana Terao

Folha de São Paulo

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