quarta-feira, 22 de março de 2023

Falando do Wokismo com tradução de Edmar Martins

Charles Robin--Canal no you tube Le Précepteur

Tradução: Edmar Martins


Falar do wokismo não é fácil. Primeiro porque o wokismo não é um movimento filosófico, é

antes um movimento político, ideológico. Trata-se de uma corrente de pensamento bastante

recente e, por isso mesmo, não dá para afirmar que o movimento deixará sua marca na história

das idéias. Segundo: a tendência de tudo exagerar no mundo da internet faz-nos muitas vezes

achar importantes certas idéias que no fundo não têm importância alguma. E terceiro, que o

pensamento woke é um terreno fértil para controvérsias mil, é assunto delicado, delicadíssimo,

que não raro suscita furibundas reações emocionais. Falar, portanto, do pensamento woke é

evidentemente expor-se à polêmica.


Mas como dizia a filósofa Simone Weil, “quando você faz política, não é mais à razão que

você recorre, mas às paixões: a política é uma máquina destinada a fabricar paixões coletivas”.

Ora, o objetivo do wokismo não é desencadear uma paixão coletiva, busca dar o que falar,

fornecer material para reflexão.


Mas afinal o que é que torna tão sensível essa questão?… Bem, simplesmente o fato de

que ele toca num tabu, tabu no sentido antropológico, ou seja… no racismo. Ora, nós vivemos

numa sociedade em que o racismo é condenável, condenável e condenado, tanto pela lei como

pela reprovação social. Em nossa sociedade o racismo não é uma opinião, é um delito, um crime.

Tratar alguém de racista não é somente qualificar sua opinião, é excluí-lo do campo da

respeitabilidade. Isto advém essencialmente do fato de que durante o século XX o racismo foi

causa direta de milhões de mortes. Ou seja, há por assim dizer uma espécie de traumatismo

civilizacional do Ocidente nessa questão — razão pela qual podemos falar de tabu.


Se é certo que todo mundo está de acordo em condenar toda forma de autoritarismo, o

fato é que totalitarismo racial é aquele mais assusta. Então que sentido faz essa analogia se

justamente o movimento wokista se proclama anti-racista? É que na visão de muita gente o

wokismo nada mais é que um racismo com o sinal trocado. Dito de outro modo, os adeptos do

wokismo não procuram de fato combater o racismo, na verdade o que fazem é praticar o racismo

contra aquelas comunidades tidas por responsáveis pelo surgimento do racismo na História. Em

português claro: o wokismo seria um racismo anti-branco.


Equacionada assim a questão, o problema que surge é que tanto wokes quanto anti-wokes

acusam-se mutuamente de racistas, o que os leva a entrar num bate-boca que não passa de um

diálogo de surdos, no qual um acusa o outro daquilo que é acusado — e ninguém fica contente de

ser tachado de racista.


Muito bem. Mas antes de investigarmos o que o wokismo diz da nossa época, convém

sondar um pouco das origens dessa corrente de pensamento. De cara podemos afirmar que esse

termo, wokismo, não é uma auto-designação, não foram os wokes que inventaram a palavra

wokismo: foram antes os opositores ao pensamento woke que cunharam o termo, e com o fim de

denegrir seus adeptos. Da mesma forma que no século XVI não foram os próprios protestantes

que se autodenominaram assim: foram os católicos, para melhor desacreditar seus adversários.

Assim, fique estabelecido que, sempre que o termo wokismo for empregado no presente

texto, não o será para desancar quem quer que seja, mas apenas por comodidade de expressão

— assim como hoje se fala em protestantismo sem que isso implique desqualificar.


Wokismo vem do inglês, woke, que por sua vez é uma deformação de awake, que significa

estar acordado: estar woke é estar acordado… Mas acordado pra quê?… Acordado para a

questão das injustiças sociais e, particularmente, para a questão da discriminação, cujas vítimas

são as chamadas minorias. O termo utilizado que engloba todas essas formas de discriminação é

a palavra opressão. A sociologia define opressão como “tratar mal ou discriminar

sistematicamente determinado grupo social, com ou sem o apoio estrutural de uma sociedade”.

Assim, a opressão não precisa necessariamente estar prevista em lei, assumida

abertamente na estrutura do poder; mas ao contrário, é antes uma estrutura difusa e proteiforme.

A opressão pode manifestar-se pela discriminação na hora de contratar um empregado, por


questões raciais, pela violência, ou mesmo pela inocolução subreptícia no linguajar corrente de

certos clichês aparentemente inofensíveis, isto é, a opressão cotidiana seria no fundo da mesma

natureza que a opressão organizada.


Mesmo não sendo fácil datar com precisão o aparecimento do termo woke, pode-se dizer

que ele começou a ganhar corpo a partir de 2014, após o assassinato de um jovem afro-

americano, Michael Brown, cometido pela polícia americana. Sua morte foi logo vista como um

símbolo do racismo policial e, por extensão, do racismo institucional vigente nos Estados Unidos.

Foi esse episódio que ensejou a criação do movimento Black Lives Matter, fortalecido poucos

anos mais tarde pela morte, desta vez, de George Floyd.


Se recuarmos algumas décadas, veremos que o termo woke já tinha sido utilizado para

designar o estado de espírito do indivíduo que está consciente da problemática da discriminação.


Em 1965 Martin Lutter King fez um discurso exortando a juventude americana a ficar acordada,

lembrando que, justo nessa época, a política de segregação começava gradativamente a ser

abolida. Nesse sentido, estar acordado é estar sempre vigilante. Além disso, uns trinta anos antes,

em 1938, já se ouvia a expressão stay woke, numa canção do músico negro americano Lead

Belly, já com esse sentido da necessidade de estar consciente da opressão sofrida pela

comunidade negra.


De maneira que aquilo a que chamamos pensamento woke é originalmente um movimento

de reivindicação que nasce no seio da comunidade afro-americana, como uma reação à violência

policial e a atos de discriminação sofridos por essa comunidade, e cujo objetivo era despertar a

população americana, os negros em primeiro lugar, para a problemática da opressão.


Não obstante tais primícias, é só a partir de 2014 que o wokismo começa a se impor no

debate público. Mas o que hoje se conhece como pensamento woke vai muito além desse

movimento inicial de defesa da comunidade afro-americana. 


Muito além e em dois sentidos —

muito além, pois o movimento abarca doravante o conjunto de todas as minorias: minoria sexual,

minoria religiosa, minoria de gênero, etc… o que se chama agora de interseccionalidade. E muito

além no conteúdo do discurso, muito além no que concerne ao radicalismo das idéias

fundamentais do movimento. Na verdade, essas duas vertentes do wokismo caminham juntas.

Comecemos pela interseccionalidade.


Nos anos 1980, Kimberlé Crenshaw é professora da Faculdade de Direito de Columbia.

Ela então desenvolve a idéia segundo a qual as mulheres negras americanas são vítimas de uma

dupla discriminação: elas são discriminadas, claro, por serem negras, e são discriminadas por

serem mulheres. Prova disso é a ausência quase total de mulheres afro-americanas no

movimento feminista da época.


Se adicionarmos a essa dupla discriminação a ligada à pobreza, o que chamamos de

classismo, a discriminação ligada à classe social, Kemberlé Crenshaw chega à conclusão de que

sobre os ombros de uma mulher negra — e pobre — pesa na verdade uma tripla discriminação,

numa sociedade, acrescenta, dominada por homens brancos. Voilà o que vem a ser a tal

interseccionalidade: a idéia de que as discriminações se somam, se superpõem, ou se

entrecruzam. Assim sendo, um homem negro, por exemplo, seria discriminado pelo fato de ser

negro, mas seria, de outro lado, privilegiado por ser homem; assim como uma mulher branca seria

privilegiada por ser branca, mas oprimida por ser mulher. Donde se segue que seria possível

desenhar uma “pirâmide da opressão”. No topo dessa pirâmide figuram altaneiros os privilegiados:

os homens brancos, heterossexuais e das classes superiores. Na base mais rasteira, ficariam as

mulheres de cor, homossexuais e pertencentes ao proletariado.


Mas aí surge um problema. O problema da quantificação de cada uma dessas opressões.

Saber se o fato de ser mulher constitui uma opressão mais ou menos importante que o fato de ser

negro. Se ser homossexual pesa mais que pertencer ao proletariado… Isto sem contar outras

espécies de discriminação, como sofrem por exemplo pessoas com deficiência (capacitismo) ou


com sobrepeso (gordofobia) — e a lista não é exaustiva. Ou seja, dependendo da maneira de

como se hierarquiza a opressão, não se chega aos mesmos resultados.


Seja como for, e aqui chegamos à segunda evolução do wokismo, a idéia central do

pensamento woke é que existem grupos oprimidos e grupos opressores, grupos discriminados e

grupos privilegiados, o que implica que existe na sociedade um sistema de privilégios do qual

alguns se beneficiam enquanto outros são excluídos. Mas ora, qual seria a categoria que

monopoliza a quase totalidade dos privilégios?… É a categoria do homem branco, heterossexual

e das classes superiores. É justamente aí que a controvérsia começa a dar o ar de sua graça.

Dizíamos há pouco que o wokismo é um assunto sensível. Por quê?… Porque o wokismo

é um movimento anti-racista e anti-discriminação, é um movimento que pretende denunciar as

injustiças que se abatem sobre as minorias. Muito bem, mas a priori um tal estado de espírito não

nos parece suficiente para desencadear uma controvérsia, afinal mesmo o sujeito mais

intolerante, mais reacionário na sua visão da sociedade, é capaz de reconhecer que é justo

combater as injustiças, por definição. E não obstante a controvérsia se instala mesmo assim

quando se trata de identificar os autores dessas injustiças, quer dizer, as categorias dos

opressores; o que é compreensível, afinal, se há oprimidos, se há opressores, convém nomear

quem são os opressores para melhor os combater — não percamos de vista que estamos lidando

com um movimento de reivindicação, terreno fértil para a eclosão de conflitos.


Ora, o opressor não pode ser outro senão aquele que se beneficia das normas em função

das quais a sociedade é construída. Nas sociedades ocidentais a população é historicamente

branca, o poder aí sempre ficou nas mãos dos homens, a norma sendo a heterossexualidade, e

os mais privilegiados sendo historicamente os ricos. Esta categorização sociológica da

dominação, essa idéia de estratos de privilégios no seio da sociedade, isto nos leva a outro

conceito fundamental do pensamento woke, a saber, o da opressão sistêmica — a dominação

estrutural está ancorada nas engrenagens da máquina social.


Marx dizia que a economia representa a infraestrutura da sociedade, ou seja, que a

dominação se exerce principalmente sobre bases econômicas. O proprietário capitalista é quem

domina e o proletário é quem é dominado. Mas na visão woke a posição econômica não é o único

fator que determina o estatuto de dominante ou dominado. Não. É a posição sociológica! E a

posição sociológica compreende a um só tempo a raça, o sexo, o nível social, a orientação sexual

e mesmo a capacidade física. Por conseguinte, pertencer a uma categoria minoritária da

sociedade é estar sob o jugo permanente de uma opressão sistêmica. E por quê?… Porque as

normas vigentes na sociedade são sempre feitas pela maioria. Donde se segue que se afastar da

norma, desviar-se da norma implica cair no campo da minoria e, portanto, numa situação de

opressão.


A título de exemplo, vejamos o que se passa com os homossexuais. Historicamente nas

sociedades ocidentais (e na maioria delas pelo mundo) a conduta normativa tem sido sempre a

heterossexualidade, sendo a homossexualidade por largo tempo reprimida. 


Na França, por

exemplo, ela foi considerada como um crime até 1792; é só a partir de 1982 que a idade da

maioridade sexual baixou para os dezoito anos para pessoas do mesmo sexo — como já o era

para as pessoas de sexo oposto.


Vige pois nas sociedades ocidentais esse princípio da heteronormatividade, que faz com

que, de maneira estrutural, de maneira sistêmica, uma pessoa homossexual forçosamente sofrerá

discriminação, e isto independentemente das intenções dos autores da discriminação. Dito de

outro modo, para os wokes, numa sociedade heteronormativa, a homofobia é estrutural, já que,

por definição, a norma exclui tudo aquilo que nela não se enquadra. De tal sorte que os membros

de uma sociedade heteronormativa não necessariamente precisam sentir-se deveras

homofóbicos, podem não ter a intenção de excluir e de discriminar os homossexuais: mas o fazem

inconscientemente. Segundo essa idéia, haveria uma espécie de inconsciente sociocultural que

faria de toda pessoa pertencente a uma minoria uma vítima sistêmica de toda pessoa pertencente

à maioria.


A mesma coisa acontece com o racismo.

Na concepção wokista, o racismo não é somente a expressão consciente e voluntária da

exclusão da pessoa de outra etnia. O racismo é também um fenômeno estrutural: discrimina-se —

estruturalmente — aquele que não pertence à etnia majoritária. Isto quer dizer que o racismo não

precisa ser consciente para existir; ele é uma consequência mecânica da estrutura normativa da

sociedade: justo o que se observa em nossa sociedade, onde os brancos são sempre majoritários.

Evidentemente, para muitos dentre nós, cidadãos do século XXI, essa concepção da

sociedade, de categorias sociológicas, contrasta um pouco com a nossa visão histórica da

sociedade: é algo que nos choca.


E nos choca em dois sentidos.

Em primeiro lugar, nos choca porque nós sabemos que opressão não é de maneira

alguma exercida sistematicamente pela maioria. Marx, aliás, demonstrou muito bem que a

opressão é exercida por uma minoria, a minoria burguesa, a minoria detentora do capital. Nesse

sentido, a maioria é antes de tudo a mão-de-obra da minoria capitalista.

Em segundo lugar, nos choca porque no Ocidente nós temos uma concepção republicana

e universalista da sociedade. Mas diabos, a visão woke não repousa sobre um modelo

universalista, repousa sobre um modelo “comunitarista”.


Expliquemo-nos um pouco sobre isso.

Em 1789 eclode a Revolução Francesa, abolindo os privilégios — pelo menos oficialmente

— e dando à luz o conceito de cidadania. O cidadão, independentemente da sua origem étnica,

independentemente da sua religião ou de suas crenças, é membro legítimo da nação e possui

exatamente os mesmos direitos que qualquer outro concidadão, o que por muito tempo foi

chamado de “cadinho republicano”; a República é vista então como uma espécie de recipiente que

pode acolher qualquer pessoa, não importando de onde venha nem quais crenças professe, à

condição de que tenha abraçado o projeto republicano, ou seja, o projeto da fraternidade entre

concidadãos: numa República os cidadãos são irmãos — ao menos no papel, claro. E essa

fraternidade transcende as ligações identitárias e comunitárias. Corolário: a República não

reconhece comunidades, só reconhece indivíduos.


Em 1905, sempre na França, é instaurada a lei da laicidade, a lei da separação entre Igreja

e Estado. E o que nos diz essa lei? Ela nos diz simplesmente que o catolicismo não será mais a

religião oficial do Estado. É uma lei que se inscreve totalmente no processo de consolidação do

projeto universalista e republicano, uma vez que a partir de então o Estado não tem nada que

meter o nariz nos negócios religiosos, que o Estado é neutro no que toca a crenças religiosas. O

que confirma a idéia do princípio universalista republicano é o pluralismo, é a tolerância para com

todas as identidades: se não há mais religião de Estado, todo mundo pode praticar a religião que

bem entende.

Isto, diga-se de passagem, explica um pouco grande parte das querelas existentes hoje na

França quando se fala em laicidade, pois alguns vêem aí uma rejeição por parte do Estado de

todas as religiões, enquanto outros, ao contrário, enxergam o mesmo princípio como uma

aceitação geral do Estado de todas as religiões.

Essa concepção da sociedade, na França, é uma herança direta desse universalismo

republicano. É uma herança que torna os franceses particularmente orgulhosos, para não dizer

arrogantes, toda vez que alguém toca no assunto das etnias, das identidades. Com efeito, na

França, falar de identidade, sobretudo de identidade étnica, não pega bem, é mal visto. É mal

visto porque a República baseia-se no princípio da assimilação, sobre a idéia de que não é a

origem étnica tampouco a cor da pele que determinam a identidade nacional. A República


francesa não se baseia numa concepção étnica da identidade nacional, ela repousa sobre uma

concepção cultural: o sujeito é francês porque escolheu ser francês, porque abraçou a cultura, os

valores, o projeto dessa sociedade. Em 1882, em sua conferência intitulada “O que é uma

nação?”, dada na Sorbonne, o historiador Ernest Renan, explicando qual é diferença entre etnia e

nação, procura demonstrar que a identidade francesa não repousa sobre etnia, mas sobre um

projeto comum, diferentemente do que acontece, por exemplo, com os alemães, para os quais a

nação é fundamentalmente ligada à etnia.


E assim a religião. Na França, como dizíamos, não há uma religião oficial. Já nos Estados

Unidos, presta-se juramento sobre a Bíblia, e nas notas de dólar está escrito “In God We Trust”, o

que para um francês soa meio bizarro; porque a França, evidentemente, não tem a mesma

história dos Estados Unidos, a mesma concepção de identidade nacional.


De modo que se o pensamento woke tem lá seu sentido no contexto americano, a coisa se

complica muito quando vista da perspectiva de um francês. A separação entre as comunidades

nada tem de chocante para um americano, é coisa até banal. Na França, no entanto, conceber a

sociedade como um agrupamento de comunidades étnicas, culturais ou religiosas separadas,

insuladas, isto é o que eles chamam de separatismo. Falar em viver entre brancos, negros ou

asiáticos na França é racismo, pois num ambiente assim subentende-se que os membros dessas

comunidades são avessos à miscigenação, que preferem ficar entre eles. Para um francês isto é a

definição mesma de racismo, de xenofobia. Na França, utilizar a palavra raça já é sinal de

racismo. A idéia de que a humanidade é despedaçada em vários cacos de raça… é racismo;

enquanto que nos Estados Unidos falar de raça não causa nenhum problema, ninguém se

escandaliza. Aliás, na carteira de identidade americana vem expressa a raça; a pessoa mestiça

não é qualificada de mestiça, mas de bi-racial. A palavra mestiço é vista como um insulto nos

Estados Unidos, porque mestiço é um termo aplicado às plantas.


A essa altura já podemos compreender por que na França o pensamento woke tem

qualquer coisa de chocante. As culturas americana e francesa não são totalmente idênticas nem

intercambiáveis, as idéias, as ideologias provenientes de ambas tampouco são idênticas ou

intercambiáveis. Não se apagam assim, numa canetada, três séculos de história política, não se

passa assim de um universalismo anti-racista e laico a um anti-racismo comunitarista e identitário

sem criar alguma perturbação neuronial. Sem saber que há uma diferença de epistemologia

política entre a abordagem universalista e a abordagem comunitarista, não dá para compreender

por que o pensamento woke encontra tanta oposição na França, mesmo entre gente progressista.


Faz já três séculos que a esquerda republicana francesa defende que não se deve julgar um

cidadão pela cor da sua pele, ou por sua religião. Mas agora nos chega a esquerda identitária

woke afirmando taxativamente que não... que justamente a cor da pele e a religião constituem

fatores absolutamente decisivos na organização das relações sociais. Sejamos mais claros.

Segundo o critério da esquerda laica e republicana, o pensamento woke é um pensamento

racista, na medida em que faz da raça e da identidade étnica um elemento social determinante.

De maneira que estamos em pleno conflito de postulados, de paradigmas políticos.


Retomemos o problema da questão religiosa. Na França, o princípio da laicidade significa

que criticar uma religião não é de maneira nenhuma equivalente a criticar o povo que pratica

aquela religião, dado que a religião tem a ver com a crença, portanto com espírito, e não com

etnia ou biologia. Assim, criticar o cristianismo não é criticar os italianos, ou brasileiros, ou

poloneses… A laicidade é a separação entre Igreja e Estado, certo, mas é também a crença da

pessoa: critica-se a crença, não o crente.


Nos Estados Unidos e na Inglaterra as coisas não se passam assim. Nos Estados Unidos

e na Inglaterra, criticar o Islã não é criticar uma crença; nos Estados Unidos e na Inglaterra, criticar

o Islã é… racismo! É racismo porque se bate na crença de um povo cuja identidade se confunde

com a religião.


Alguns talvez terão visto aquela entrevista com a jornalista francesa Caroline Fourest, na

TV britânica Sky News, em 2015, na qual ela apresenta caricaturas do profeta do Islã. E o que é


se passou?… O que se passou foi que a entrevista foi imediatamente interrompida e a âncora do

jornal mais que depressa foi logo apresentando suas desculpas aos telespectadores, porque esta

julgou, como é o caso no Reino Unido, que criticar o Islã ao vivo não era somente criticar uma

crença — era ofender toda uma comunidade. Voilà a concepção comunitarista da identidade.

Nessa concepção, é a laicidade que é vista como uma forma de racismo, porque a laicidade

impõe o silêncio à religião, porque a laicidade permite insultar as religiões, e isto está muito

errado, afinal a religião faz parte da identidade dos povos.


Bem diferente, como vemos, e não podemos fechar os olhos para essas diferenças.

Quando personalidades da esquerda denunciam aquilo que no seu entender é uma deriva

do pensamento woke, não é porque tenham se bandeado para as fileiras do inimigo, não é por

uma súbita conversão ao racismo: elas fazem isso por estarem estribadas numa concepção

republicana e universalista do anti-racismo, que estima, com ou sem razão, que trazer o tema da

identidade para o centro do debate, que julgar uma pessoa por sua cor de pele, raça ou religião é

a essência mesma do racismo.


Não estamos diante, portanto, de anti-racistas que se tornam racistas do dia pra noite.

Estamos diante de duas concepções de anti-racismo diametralmente opostas: de um lado, a

concepção universalista, que nega haver diferenças entre o povo tomado em seu conjunto e as

comunidades em particular; de outro, a concepção comunitarista que vê nessa diferença entre

povo e comunidades a origem mesma de toda espécie de opressão.


Do ponto de vista do pensamento woke, falar de privilégio branco, falar de masculinidade

tóxica, falar da cultura do estupro, isso não choca, não escandaliza ninguém. É apenas chamar as

coisas pelo nome, é apenas apontar o dedo para os culpados: é abrir os olhos. Há algo de

diferente no pensamento woke, que busca sentenciar como culpados da opressão não uma casta,

mas uma comunidade de indivíduos. Para o adepto do wokismo, ser branco é beneficiar-se do

privilégio branco; ser heterossexual é beneficiar-se da heteronormatividade; e ser homem é se

beneficiar do patriarcado.


A questão, pois, não é mais de saber quais idéias o sujeito defende, o que importa é saber

à qual comunidade pertence. Pois a opressão não é uma questão de idéias, mas uma questão de

identidade. Os negros não são oprimidos pelas idéias que professam, mas pelo fato mesmo de

serem negros. Assim como os homossexuais não são oprimidos por suas idéias, mas por serem

homossexuais tout court. E bem assim as mulheres.


E mais: o pensamento woke estima que não são as idéias que condicionam as relações de

dominação, mas o pertencimento comunitário. Dito de outro modo, o inimigo não é aquele que não

pensa como eu, o inimigo é aquele que pertence à comunidade dominante. Há, portanto, no

pensamento woke uma como essencialização do opressor. Essa essencialilzação quer dizer que

não adianta tentar convencer o opressor a cessar de sê-lo, pois ele é porque é, e continua sendo

não importando o que faça, é sua natureza intrínseca. Não se trata de uma questão de idéias ou

de valores, é uma questão de pertencimento comunitário. Do ponto de vista woke o indivíduo não

transcende jamais seu pertencimento comunitário. Um branco ostentando uma cabeleira rastafari

não é de jeito nenhum um branco que abraça a negritude, é muito mais um branco cometendo

apropriação cultural. Assim como um homem que se pretende feminista, não é que tenha

abraçado a causa das mulheres, o que ele está fazendo no fundo é tentar aliviar um pouco o peso

da sua consciência. É por esta razão que os wokes dão muito valor ao lugar de fala. De sorte que

para estar autorizado a falar de racismo, feminismo ou homofobia, o sujeito precisa ter lugar de

fala. Ter lugar de fala quer dizer fazer parte da comunidade objeto dos preconceitos de que se

fala. Se a pessoa não faz parte de uma comunidade oprimida, seu testemunho não passa de uma

abstração.


Ter ou não ter lugar de fala, por conseguinte, é trasladar o núcleo da militância política do

pensamento para a identidade: o sujeito se define politicamente muito mais pelo seu

pertencimento comunitário que pelas idéias que professa.


Isto pode nos parecer chocante, mas pensando bem faz sentido. Quando Marx descreve a

dominação capitalista, em nenhum momento ele exorta os capitalistas a darem sua opinião, afinal

quem sofre as consequências da dominação são os proletários, ou seja, os dominados. É o

mesmo caso do wokismo, à diferença que, para o pensamento woke, não é somente a posição

econômica que define o lugar de fala, é muito mais a posição comunitária. Um branco não tem

nada que falar do racismo que sofrem os negros, dado que ele mesmo não é uma vítima; e,

portanto, para um branco, falar de racismo é flanar nas nuvens da abstração, é uma opinião sem

valor.

Malcom X, militante afro-americano, quando uma jovem jornalista branca veio lhe informar

que, ela, estava bem engajada na causa, perguntando o que poderia fazer para ajudar, ele sorriu

e disse que nada, que o combate identitário não é uma luta de idéias.


Mas se é assim, por que será que entre os militantes woke, mesmo entre os mais

encarniçados, há gente sem lugar de fala?!… brancos, burgueses, heterossexuais, etc. Por que

há privilegiados nas fileiras woke?! Será que esses militantes se dão conta de que estão se

apropriando de um debate que não lhes diz respeito?… A menos, é claro, que a fala de quem não

tem autoridade para falar seja aceita, desde que corrobore as teses do wokismo... Houve um caso

de uma ativista americana, Jessica Crug, que durante anos fez crer a seus estudantes que ela era

de origem africana. Finalmente se descobriu que ela inventara a história para ter, aos olhos dos

alunos, legitimidade para falar de certos temas. Obviamente que esse é um caso isolado, mas que

nos dá uma boa idéia da necessidade que têm certos progressistas brancos de escarafunchar

algum elo de ligação com alguma etnia exótica, tão somente para que se reconheça pertencerem

ao campo dos oprimidos. Assim, basta descobrir um antepassado espanhol para se sentir

membro da comunidade dos imigrantes…


É quase impossível entender o sucesso que faz o pensamento woke entre inúmeros

militantes progressistas brancos e heterossexuais, ou seja, entre militantes sem lugar de fala, sem

compreender ao mesmo tempo o sentimento psicológico que os anima: o sentimento de culpa.

Com efeito, o Ocidente moderno é assombrado constantemente pelo sentimento de culpa.

Durante séculos, o Ocidente impôs seu modelo às demais civilizações, seja pela força, seja pela

religião, economia ou tecnologia, e continua a impô-lo pela propaganda midiática. O famoso soft

power vem declinando depois de algumas décadas; novas potências econômicas estão

emergindo, como China, Índia, Rússia, Brasil: o Ocidente, enfim, vem perdendo seu monopólio de

influência, e ao perdê-lo, perde também sua legitimidade.


O Ocidente não está mais em condições de dar lições ao mundo, e ao prestar contas a si

mesmo do que fez e do que deixou de fazer, ao mirar-se no espelho, ele não gosta nada da

imagem que vê. Compreende-se bem a feiúra dessa imagem, que todavia só fica nítida quando

não dispomos mais dos meios de impor a nossa legitimidade: a culpabilidade só dá o ar da graça

quando compreendemos enfim quais são as consequências dos nossos atos.

O Ocidente se construiu em cima das conquistas, e não obstante hoje em dia o Ocidente

nos diz que a conquista não é coisa que preste. O Ocidente se construiu pela violência, mas agora

nos diz que a violência é um erro, um mal… E a intolerância? Um mal. E o racismo? Um mal. O

Ocidente entrou na era da desconstrução. Jacques Derrida dizia que a desconstrução é aquilo

que vem a acontecer, é um retorno sobre si mesmo. E ao nos retornarmos sobre nós mesmos, o

que fazemos é chorar. Choramos pelo que fizemos outros povos sofrer, pelos crimes que jamais

poderão ser reparados. E justamente por estarmos conscientes de jamais poder repará-los, nós

nos punimos, nos castigamos. A desconstrução é o resultado de uma consciência pesada,

envergonhada: é a vergonha de si, vergonha de pertencer a um Ocidente desacreditado, rejeitado

pelo resto do mundo. Para o Ocidente não há outra saída senão pela via do arrependimento, da

expiação, do pedido de perdão. Perdão pela escravidão, perdão pela colonização. Perdão ante a

História.


O etnomasoquismo, a vergonha de pertencer a um povo, é a expressão de um desejo de

se tornar oprimido, de trocar de lugar com ele; é o desejo de infligir a si mesmo o que se infligiu a

outrem, para limpar a consciência, para salvar a alma. Se hoje nos inclinamos ante aqueles que

oprimimos, é para nos esquecermos da opressão que um dia perpetramos. Nós invertemos os

papéis na esperança de pagar nossa dívida. Em “A ilha dos escravos” de Marivaux, os escravos

se tornam senhores e os senhores, escravos… Porque é somente sentindo na pele o que

sofreram os oprimidos que deixamos de ser opressores.

Quando um militante woke branco, diante de uma câmera, beija os pés de homens e

mulheres pertencentes a alguma minoria, ele o faz para exprimir o peso da consciência do

Ocidente. É auto-humilhação como meio de reparar as faltas.

Mate-me para vingar o que fizeram meus ancestrais.

Mate-me pelos crimes do meu povo.


Mate-me porque eu sou o mal.

O mais irônico nessa história toda é finalmente constatar que a usurpação do movimento

woke por gente desautorizada, sem lugar de fala, o fato de ocidentais brancos postarem-se à testa

do movimento — revela que efetivamente o homem ocidental não perde nunca o cacoete de se

meter em tudo, que ele se acha o representante do Bem e do Justo, sempre destro na arte de dar

lições ao mundo. O homem ocidental, mesmo quando se vê no banco dos réus, mesmo nessa

posição vexatória, acaba encontrando um jeito de ser o porta-voz das minorias. Ao abraçar a

causa dos oprimidos, ao filiar-se ao partido dos oprimidos, o ocidental woke usurpa-lhes o

estatuto, engaja-se numa causa que não é a sua, em nome da solidariedade, da fraternidade, sem

dar-se conta de que tal estratagema é muito mais útil para ele próprio, que não aguenta mais

sentir-se culpado. O ocidental faz do oprimido um instrumento de recuperação da sua paz de

consciência.


Se o homem ocidental pretende mesmo emendar-se, olhar-se no espelho e não ver um

bicho feio e visguento, ele então que saiba que virtude não se obtém passando lição de moral nos

outros.

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