quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Filme: CORINGA - Trailer



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O compositor norte-americano Stephen Sondheim disse numa entrevista que o título de sua música “Send in the clowns” é uma referência a uma prática no circo, teatro e afins de que quando algo dá errado, manda-se entrar os palhaços para distrair o público. Em Coringa, a extravagância vazia de Todd Phillips, essa música aparece duas vezes. A primeira é num momento climático, quando o protagonista Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) se dá conta do que é capaz de fazer para transformar sua vida de eterno loser. Não é bem um ato consciente, mas, como tantos outros no filme, é de violência catártica, capaz de trazer à tona o que há de pior no personagem e nos sentimentos do público.

O longa aspira a ser um comentário inflamado e incendiário sobre o nosso tempo, mas é como se Phillips e o roteirista Scott Silver tivessem lido mal Freud, Guy Debord e o Alan Moore do V de Vingança e, sentindo-se sagazes o bastante, juntassem tudo num caldeirão e jogassem na tela com um lança-chamas. O resultado é tão pueril quanto problemático em sua estetização da violência. O longa – a se julgar pela fachada de um cinema onde se é exibido Um tiro na noite – se passa no começo dos anos de 1980, mais precisamente entre Taxi Driver (1976) e O rei da comédia (1982), ambos de Martin Scorsese, uma forte influência aqui. Aliás, é tanta referência à obra dele, que o diretor merecia, ao menos, algum crédito neste filme.

Gotham City é, obviamente, uma versão de Nova York, e aqui está coberta de lixo por conta da greve dos lixeiros. É um lugar feio, o palco de uma luta classes acirrada pelo milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), forte partidário da meritocracia e candidato à prefeitura. A mãe de Fleck, Penny (Frances Conroy), trabalhou para ele e escreve cartas diárias pedindo ajuda, das quais nunca recebe resposta. Enquanto isso, o protagonista trabalha numa agência de palhaços e é contratado para ficar em portas de lojas com placas, ou fazer visitas a hospitais infantis.

Em casa, ele sonha em ser convidado para um programa de televisão apresentado por Murray Franklin (Robert De Niro). Sua participação não apenas seria um sucesso como ele seria adotado pelo sujeito. Fleck é, claramente, um sujeito alienado da realidade, com, possivelmente, um problema mental que, em situações de nervoso, o leva a disparar risadas assustadoras. Ele carrega um cartão explicando isso, para mostrar a estranhos quando não consegue parar de rir. Pode ser verdade, ou pode ser mais uma tentativa de piada do personagem.

Fleck aspira ser comediante, na verdade. Suas apresentações de stand up são constrangedoras, e o filme faz questão de frisar isso mais de uma vez. Sua salvação seria o humor e o tratamento psicológico, diz o longa, mas a prefeitura de Gotham corta a verba dos programas sociais. O protagonista se interessa por sua vizinha – negra e mãe solteira, interpretada por Zazie Beetz. Mas racismo e misoginia não são assuntos que interessam ao filme.

Phoenix é, como sempre, assombroso no papel. Ele não interpreta o personagem, ele habita Fleck, que, mais tarde, adotará o nom de guerre de Coringa. Merecia muito mais um prêmio do que o filme em si. O personagem se coloca com dubiedade e, por algum tempo, não sabemos muito bem se somos a favor ou contra ele, se ele é o herói ou o vilão. Mas não custa muito e Phillips joga pela janela qualquer sutileza que o filme poderia ter e centenas de pessoas com máscaras de palhaço clamam por revolução. Só que não.

Phillips sempre foi um diretor de comédias medianas a medíocres. Assim, talvez fosse necessário alguém que entendesse o que pode haver de mais grotesco no humor para transformar a história da mutação de um homem numa piada violenta ambulante. Não é o caso aqui. Ele e o seu corroterista não compreendem a dubiedade do Coringa. Mas, ainda assim, o filme faz sentido na filmografia do diretor, que sempre traz homens adultos americanos incapazes de encarar a vida de frente.

A narrativa não transcorre de maneira orgânica, e o filme é como uma série de fragmentos sombrios que se levam a sério demais e se tomam como uma Grande Arte. Não há dúvida de que haverá muita gente comprando-o pelo preço que se vende. A começar pelo inexplicável prêmio principal no Festival de Veneza deste ano, com um júri presidido pela argentina Lucrécia Martel. Coringa também é um filme que abraça toda a controvérsia que o cerca (alguns cinemas nos EUA anunciaram aumento da segurança quando o filme estrear).

Phillips crê que está incomodando – e até está, mas não exatamente pelos motivos que ele crê. A trilha sonora, por exemplo, traz Gary Glitter – já condenado por pornografia infantil, estupro e pedofilia. Colocar uma música dele no filme é o tipo de ousadia que Phillips está disposto a cometer, mas que soa mais como uma jogada de marketing para chamar a atenção do que pura audácia.

Em uma cena, ricos em roupa de gala assistem a uma sessão de Tempos Modernos, um filme que, entre outras coisas, denuncia a alienação como um dos principais males da exploração do capital. Não há dúvida de que, dada a forma como a trama é conduzida, Phillips coloca seu Coringa no mesmo patamar. Seu clímax inflamado – que deve muito a V de Vingança – é tão pretensioso quanto tolo em sua ingenuidade no retrato de classe. Ao tentar fazer uma espécie de denúncia do esvaziamento do sentimento de revolução no nosso tempo e um clamor pelo levante, o diretor realiza apenas um artefato banal e, em certa medida, perigoso, e tão alienado quanto a alienação que pretende criticar. É melhor que entrem logo os palhaços.
Alysson Oliveira

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