sábado, 18 de maio de 2019

Almodóvar apaixona Cannes com "Dor e Glória"





Neusa Barbosa, de Cannes /Cine Web

De muitas maneiras, o novo filme de Pedro Almodóvar, Dor e Glória, é uma volta - ao melodrama, particularmente, que é um gênero que definitivamente domina, com uma contenção adquirida na maturidade. Ficaram para trás as comédias descabeladas tipo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Este novo filme dialoga com o clima de Fale com Ela ou Tudo sobre Minha Mãe, a partir do ponto de vista de um protagonista masculino, Salvador Mallo (Antonio Banderas).

O fato de o personagem ser um cineasta sinaliza para um exercício de autobiografia - e outras referências aparecem pelo caminho. Que seja interpretado por um dos atores-fetiche da carreira do mais famoso cineasta espanhol é outra pista de que Almodóvar olhou para o longo passado percorrido, rearrumou as cartas do baralho e jogou de novo, com segurança, paixão, injetando sangue novo em território conhecido.

Muito levianamente, alguns podem dizer que é mais do mesmo, mas é imprescindível observar que um mestre como Almodóvar não acerta sempre e há algum tempo ele não acertava tanto quanto aqui. Seus longas mais recentes - como A Pele que Habito, Os Amantes Passageiros e Julieta - não alcançaram o mesmo brilho do passado. Na véspera dos 70 anos, que completa em setembro, Almodóvar parece ter feito um acerto com toda a sua carreira e até com dramas pessoais, dele e de Banderas.

Saúde frágil

Pululam na trajetória do protagonista de Dor e Glória - que tem estreia prevista para 13 de junho no Brasil - referências a problemas de saúde penosos, que remetem a males que acometeram na vida real tanto Almodóvar (dor nas costas) quanto Banderas (coração e suspeita de tumor). O ressurgimento de uma figura forte de mãe - na juventude, interpretada por Penélope Cruz, na velhice, por Julieta Serrano - recolocam um relacionamento que já surgiu, de maneira muito feliz, em diversos filmes do diretor. Mas há frescor na foram como tudo isto é retomado, coberto pelo verniz colorido da ficção.

Aqui, Almodóvar retoma suas cores intensas, seja nos cenários, seja nos figurinos, seja na temperatura das paixões do passado, que assolam a memória de Salvador, um cineasta de sucesso que se recolheu da vida social, abatido por seus problemas físicos e uma depressão. A comemoração do aniversário de um de seus antigos sucessos leva-o ao encontro de seu ator, Alberto Crespo (o magnético Asier Etxeandial), com quem teve um atrito e há anos não fala - mais uma vez lembrando as brigas de Almodóvar e alguns de seus intérpretes. Mas quem nunca?

Reconciliações

Há um tom de reconciliação ao longo de Dor e Glória, que explora alguns caminhos, levando também a um antigo amor do passado de Salvador, Federico (Leonardo Sbaraglia). E também há afetos platônicos, como a fiel amiga do cineasta, Mercedes (Nora Navas), exercitando a vocação do filme para falar de afetos múltiplos, dentro e fora da família, procurando estabelecer os limites de alguma verdade. Afinal, na maturidade, o que mais se pode querer do que ser fiel a si mesmo?

Almodóvar já frequentou várias vezes o Festival de Cannes, concorrendo à Palma cinco vezes, mas nunca levando o prêmio maior - só direção, em 1999, por Tudo sobre Minha Mãe, e roteiro, em 2006, por Volver (que também deu o troféu de melhor atriz a Penélope Cruz). Quem sabe agora o júri, presidido por um hispânico, o mexicano Alejandro González Iñárritu, muda esta história.

Na concorrida coletiva, Almodóvar falou de tudo, inclusive do Brasil. Assumiu o quanto se sente "vinculado à cultura brasileira", especialmente através da música que ele escuta. Lembrou de Caetano Veloso, de como foi acolhido por ele e seus amigos quando visitou o Brasil, país com que, segundo ele, teve uma empatia imediata. "Foi como se o conhecesse antes de tê-lo conhecido", definiu. Almodóvar identificou-se com o que chamou de "vitalidade frenética, com a estética dos morros>Me identifiquei visualmente, fisicamente" Em seguida, observou: "Lamento que o país esteja passando por uma etapa tão dura hoje. Espero que o povo brasileiro encontre rapidamente uma nova direção".

De homens e plantas

Retomando o filme de gênero que é um dos fortes da seleção de Cannes este ano, a austríaca Jessica Hausner elaborou um frio suspense fantástico em Little Joe, seu quinto longa e o primeiro falado em inglês. A protagonista é a cientista Alice (Emily Beecham), criadora de uma flor que depende não só de calor como de contato humano e que, em troca dessa interação, proporciona um perfume capaz de provocar felicidade ao seu dono.

Com um clima frio e distanciado, a história adentra território mais sombrio quando se percebe que as mudas de flores estão manifestando reações inesperadas à manipulação genética que as impede de reproduzir-se. Essas reações encontram seu vetor no pólen, com o qual as flores aparentemente passam a modificar o comportamento de seus cuidadores no laboratório. A experiência ganha outro contorno quando Alice presenteia o filho, Joe (Kit Connor), com uma dessa mudas, tornando a experiência imprevisível.

O estilo contido e as interferências pontuais da terapeuta de Alice (Lindsay Duncan) levam a uma ambiguidade que a diretora sustenta até certo ponto. Mas a produção sofre de um certo esquematismo, que a impede de atingir a grandeza de alguns mestres do gênero, como David Cronenberg.

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