segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Banda de metal do Iraque enfrentou a guerra por sua música

Ben Sisario


O Acrassicauda passou por um período infernal como banda de rock
tentando se manter ativa na Bagdá em guerra. O estúdio de ensaio do
grupo foi bombardeado. Seus integrantes foram classificados como
devotos de satanás e receberam ameaças de morte por fazerem música ao
estilo ocidental. Depois, passaram por dois anos de purgatório como
refugiados na Síria e Turquia, matando o tempo e sonhando em fazer
rock na terra da liberdade.

E na noite de domingo, dois dias depois que o último dos quatro
integrantes da banda conseguiu chegar aos Estados Unidos, eles
desfrutaram de algo que qualquer fã de heavy metal definiria como
paraíso: trocaram abraços e conversaram nos bastidores com os
integrantes do Metallica, no Prudential Center, em Nova Jersey. A
surpresa que James Hetfield, o vocalista do Metallica, fez depois do
show ao lhes entregar uma de suas guitarras, uma ESP preta,
autografada com a inscrição "bem-vindos à América", provavelmente nem
teria sido necessária para emocionar completamente os rapazes. "Isso é
porque vocês mantiveram a fé", disse Hetfield ao deixar os bastidores
com seu séquito. "Componham bons riffs".

A fé do Acrassicauda no rock foi retratada no documentário "Heavy
Metal in Baghdad", lançado em 2007. O filme mostrava os membros da
banda como roqueiros comuns, se bem que muito tenazes, em meio às mais
extraordinárias circunstâncias, e eles continuam a desempenhar o mesmo
papel em suas novas vidas.

O governo dos Estados Unidos lhes conferiu status especial como
refugiados, o que permite que solicitem green cards dentro de um ano,
e o Comitê Internacional de Resgate os acomodou em um modesto
apartamento de um quarto em Elizabeth, Nova Jersey, onde ainda não há
pôsteres do Metallica ou do Slayer nas paredes mas já se pode ver uma
pilha de guitarras em um dos cantos. "Isso é muito mais do que
poderíamos esperar ou sonhar", disse Firas Al-Lateef, 27 anos, o
baixista da banda, chegado aos Estados Unidos quatro meses atrás.

Nos bastidores, depois do show do Metallica, Al-Lateef estava rindo à
toa, incrédulo, na companhia de dois de seus colegas de banda - o
vocalista e guitarrista base Faisal Talal, 25 anos, e o baterista
Marwan Riyadh, o último a chegar aos Estados Unidos. O guitarrista
solo, Tony Aziz, que completará 30 anos na quarta-feira, estava em
Michigan batalhando para conseguir trazer sua família do Iraque; os
demais membros de sua banda menearam as cabeças expressando tristeza
por essa ausência nada oportuna. Era apenas o segundo show de rock a
que a banda havia assistido, depois de verem o venerável Testament na
Turquia.

Mas eles dizem que estão muito conscientes de outros desafios que os
aguardam, enquanto tentam cumprir seu compromisso de tocar bastante e
procurar espaço no mercado aberto do heavy metal.

"Nós somos bons em processos", diz Riyadh, 24 anos, que anteriormente
usava o nome Marwan Hussain. "Ir ao UNHCR", ele disse, em referência
ao alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados, "passar
três ou quatro horas em uma fila. Somos bons nisso. Mas, musicalmente,
precisamos ensaiar".

Talvez não existam muitas bandas de metal vindas de Bagdá, mas como
refugiados os membros do Acrassicauda (a pronúncia correta é
"a-cress-a-CAU-da", e o nome é o de uma espécie de escorpião negro)
estão longe de serem um caso único, e nem todo mundo que tentou
conseguiu superar os mesmos obstáculos.

Do total de até dois milhões de refugiados iraquianos espalhados pelo
mundo, apenas cerca de 13 mil foram admitidos aos Estados Unidos no
ano fiscal de 2008, encerrado em 30 de setembro; a cota prevista para
o ano fiscal de 2009 é de mais 17 mil. Um funcionário do Departamento
de Estado norte-americano disse que, nos últimos 18 meses, 47 dos
refugiados iraquianos admitidos nos Estados Unidos eram músicos.

"Eles foram muito afortunados por terem conseguido admissão", disse
Bob Carey, vice-presidente de política de migração e de reassentamento
do Comitê Internacional de Resgate, sobre a banda. "Parte disso se
deve à perseverança, parte às pessoas que falaram em benefício deles,
e parte à sorte".

Os principais defensores da causa do Acrassicauda estão na Vice, uma
editora e produtora de mídia sediada em Brooklyn que realizou "Heavy
Metal in Baghdad". A Vice é mais conhecida por seus comentários
engraçados sobre a cultura pop do que por esforços de assistência
humanitária, mas o grupo trabalhou sem descanso em benefício d
Acrassicauda por um ano e meio.

A empresa primeiro tentou encontrar refúgio para os membros da banda
no Canadá e na Alemanha, e os bancou durante todo o período - com
gastos de US$ 40 mil cobertos diretamente pela companhia, e por meio
de patrocínios e doações recolhidas online, diz Suroosh Alvi, fundador
da empresa e um dos diretores do filme.

"Nós revelamos o que eles faziam, no documentários, e colocamos suas
vidas em perigo", disse Alvi a caminho do Prudential Center, onde uma
pequena equipe de funcionários de sua empresa estava filmando as
trocas de cumprimentos e os olhares atônitos dos membros da banda para
as montanhas de equipamento espalhados pelos bastidores da
apresentação do Metallica. "Eles recebiam ameaças vindas do Iraque,
quando estavam refugiados na Síria", acrescentou. "Nós tínhamos uma
responsabilidade para com eles".

Os membros da banda insistem em que não receberam tratamento especial
de qualquer agência do governo norte-americano. O Serviço de Cidadania
e Imigração dos Estados Unidos, subordinado ao Departamento de
Segurança Interna, não comenta sobre casos específicos, mas para que
se qualifiquem ao status de refugiados todos os solicitantes precisam
demonstrar que enfrentam perseguição por motivos raciais, religiosos,
de nacionalidade, opinião política ou em função de seu grupo social.

Para músicos como ele, a opção por tocar heavy metal pode bastar para
fazê-los alvos de extremistas, e os integrantes da banda continuam a
temer pela segurança de suas famílias no Iraque.

"Eu ocasionalmente me sinto um tanto culpado, porque agora estou em um
local seguro e eles não. Continuam em risco, e por minha causa", diz
Al-Lateef. "O fato de que eu queira tocar em uma banda de heavy metal
coloca em risco as vidas de meus familiares".

Mas eles estão decididos a continuar sendo uma banda de heavy metal, e
se irritam com a idéia de que atenção demais vem sendo dedicada à
condição de refugiados em que vivem e pouca atenção à música pela qual
colocaram suas vidas em risco e decidiram deixar seu país de origem.

"O que eu desejo é ser músico", diz Riyadh. "Quero lançar um álbum.
Mas sentimos uma forte pressão de parte da mídia. E na verdade sempre
fica aquela dúvida: eles se interessam por mim porque sou músico ou se
interessam por mim porque minha história é incomum?".

Evidentemente, o Metallica considera o Acrassicauda muito
interessante, e no domingo os integrantes da banda não pareciam
lamentar muito o fato. Antes do show, os três foram conduzidos pelo
labirinto da produção nos bastidores, e nos camarins receberam muita
atenção de seus heróis. Cada um dos quatro membros do Metallica veio
separadamente - e acompanhado por um séquito numeroso - para expressar
respeito, falar de música e segurar os chifres metálicos em poses para
longas sequências de fotos.

Kirk Hammett, o guitarrista solo do Metallica, foi o último a aparecer
e, enquanto conversava com os metaleiros iraquianos e jornalistas,
continuava diligentemente os seus exercícios de aquecimento, movendo
os dedos sobre o braço de uma guitarra desplugada. "Vocês representam
a paixão das pessoas que desejam tocar esse tipo de música", ele
declarou.

Os membros do Acrassicauda só voltaram ao seu apartamento em Elizabeth
bem depois da meia-noite, carregando sacos repletos de comida do
Burger King para seu jantar. Talal, no entanto, preferiu conectar
imediatamente a guitarra nova que havia ganho de Hetfield a um
minúsculo amplificador Peavey. Com o volume, baixo, ele começou a
tocar riffs do Metallica. Ele olhou para cima e exclamou, "uau!", com
um sorriso, e depois voltou sua atenção à guitarra.

Tradução: Paulo Migliacci

The New York Times

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