Posto avançado da crise dos refugiados na Europa, a pequena ilha siciliana de Lampedusa teve seu destino alterado drasticamente. De bucólica residência de uma escassa população de 6.000 habitantes, em boa parte dedicada à pesca e aos serviços turísticos, o local tornou-se ponto de transição para as multidões de fugitivos da África e do Oriente Médio.
O drama desta ilha no olho do furacão é o centro do documentário “Fogo no Mar”, com que o diretor italiano Gianfranco Rosi venceu o mais recente Festival de Berlim – quase três anos depois de ter igualmente ganho o Festival de Veneza com outro documentário, o “Sacro GRA”.
Rosi passou cerca de um ano em Lampedusa, observando a maciça chegada desses precários viajantes do mar – estima-se que, nos últimos 20 anos, tenham desembarcado ali cerca de 400.000 pessoas, dos quais 15.000 pelo menos morreram na tentativa.
A câmera de Rosi, que é manejada por ele mesmo, focaliza não só os estrangeiros desgarrados em busca de um destino na Europa. Também se volta para alguns habitantes selecionados de Lampedusa, capazes de traduzir a imensa carga emocional que a tragédia cotidiana dos refugiados vem impondo à população local.
Um deles é o menino Samuele Pucillo, de 12 anos. Um garoto normal, que prefere caçar passarinhos do que ir à escola e que está experimentando alguns problemas de saúde. Sutilmente, o filme evidencia como as emoções do menino, um símbolo de outras crianças da ilha, estão sendo contaminadas pela visão constante de vítimas do medo e da morte nas praias aparentemente límpidas.
Outro personagem emblemático é o único médico local, Pietro Bartolo, sobre quem pesa a responsabilidade de zelar pelos vivos – com muitos dos quais não consegue comunicar-se, pois falam línguas estranhas – e também pelo destino final dos mortos. Ele perdeu a conta das autópsias que realizou, muitas delas de crianças – um cenário que perturba seu sono, com justas razões.
Rosi acompanha também diversas operações de socorro a barcos em perigo pela guarda costeira italiana, ali sobrecarregada dia e noite. Mais do que entrevistas e evitando a narração, o diretor prefere mostrar uma série imensa de rostos, captando emoções que ator algum conseguiria reproduzir, medo, tristeza, alívio, incerteza quanto ao futuro.
Um relato espontâneo resume a saga trágica dos refugiados. Um grupo nigeriano conta que escapou de bombardeios na Nigéria (onde é ativo o grupo extremista Boko Haram), fugindo pelo deserto do Saara, onde morreram vários, de sede, fome ou exaustão. Os que puderam, entraram pela Líbia, onde outros tantos foram presos e também morreram. Os sobreviventes embarcaram no barco precário que os trouxe a Lampedusa. Dos 90 iniciais, restaram apenas 30.
Depois de mostrar muitos destes imigrantes vivos, o filme não se poupa também de expor, ainda que mais à distância, as imagens do porão de um destes barcos, abarrotado de cadáveres. A imagem de um antigo navio negreiro, dos tempos da escravidão colonial, inapelavelmente vem à mente.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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