terça-feira, 27 de março de 2012

Dramaturgo Gerald Thomas relembra o humorista Chico Anysio

Folha.com

Todo mundo ria muito com o Chico. Eu, inclusive. Mas comecei a traçar uns paralelos entre o Chico crítico e o professor Raimundo demagógico e apelativo e, graças a Deus, cheguei a algumas conclusões.

"A Classe Morta", de Tadeusz Kantor (1915-90), é um dos espetáculos que mais definiram o teatro pós-moderno --quase sem texto, quase oposto a Pina Bausch--, já que a movimentação dos atores nada tinha a ver com dança. A partir de "Classe" e "Wielepole Wielepole", comecei a notar a que Chico Anysio fazia criticas severas --acidas-- sulfúricas, a imbecilidade da "cultura baixa" (tão reverenciada no Brasil) e lutava ferozmente, com humor, contra o analfabetismo.

Chico Anysio se autodescrevia como um deprimido, hiper ansioso e era assumidamente um ser em constante estado de busca uma categoria que o encaixasse ou o deixasse confortável, "outsider" que era. Em suas próprias palavras, "nascer e crescer no Ceará e conquistar o universo cultural brasileiro é mais difícil que nascer austriaco e conquistar a America". Chico se referia ao ex-governador da Califórnia, Arnold Schwartzenegger ou tantos estrangeiros (como Henry Kissinger, Margareth Albright) que exerceram tanto poder no pais mais poderoso do mundo.

E, tendo conquistado o Brasil, cometeu um erro do amor se unindo a Zélia Cardoso de Mello, a mulher mais odiada de sua época. Mudaram-se pros Estados Unidos onde ele estava disposto a começar tudo de novo, do zero, sem falar o inglês fluente, alias, inglês nenhum. Chico Anysio tinha regras, mas as quebrava o tempo todo. Assim é a vida de um angustiado. E essas angustias - como estamos acostumados a ver desde Chaplin, Valentin, Buster Keaton até Woody Allen, nascem do "desencaixe" e da profunda angustia de tentar e tentar achar uma maneira de sair dela.

Eu ainda tinha coluna bimensal nesse jornal quando resolvi defender o Chico e sua escolinha revelando alguns segredos que o mortal telespectador não sabia, já que o chamado "patrulhismo ideológico" caiu de pau no trabalho dele.

Quando saiu minha coluna, lá por 1997, juntei o Chico ao Tadeusz Kantor e muita coisa mudou. Ninguém acreditoum, muito menos o próprio Chico Anysio. Mas a minha comparação era real, honesta e valida.

Chico e eu:

Eu estava quieto no meu apartamento em Brooklyn, NY, quando recebo um telefonema dele - também em NY (em Manhattan, na Park Avenue) ainda casado com a Zélia Cardoso de Mello.

"Oi Gerald. Aqui é o Francisco. Aqui quem fala é um deprimido que chamam por ai de Chico Anysio". Combinei de pega-lo em sua casa e o levei pra um restaurante italiano (Bice, se não me engano) na rua 54, muito popular naquela época.

E ele veio munido. Munido de emoção por estarmos ali, jogados e confusos, aos prantos por um reconhecimento da chamada "vanguarda" mais que merecido.

E munido também de uns 15 scripts pra cinema, que escrevia as dúzias, as pencas, por kilo, por dia, algumas peças de teatro, livros a serem publicados e três mil idéias para a televisão.
"Veja bem Gerald: eu critico o sistema de "ser" do brasileiro no canal que ajudei a consolidar - a TV Globo - e fazia isso com o endosso do Boni. Agora que o Boni se foi, não sei mais se pertenço ou não ao jogo que se tem que fazer".

Fiquei muito impactado com um dos roteiros: "The Friar", que trazia fora da sacola, na mão.

"Gerald, por favor faça isso chegar nas mãos do Sean Connery". "Sean Connery?" "Sim, precisa ser ele, escrevi pra ele".

Fiz chegar as mãos do ex 007, mas Connery estava com um espetáculo na Broadway e com uma verdadeira agenda lotada até sei la quando. Connery gostou do que leuy e marcava e desmercava reuniões, ate que desisti.

"O que eu faço aqui, Gerald?" Senti a amargura e sua dor. E não exagero. E tive uma idéia.

Sou muito amigo de Hugh Hudson (Carruagens de Fogo, Revolution com Al Pacino - tive um debate publico no fest de cinema do Leon Kacoff em 2008 com o Hugh em Sampa). Ligamos pro Hugh aqui em Londres e ele se entusiasmou com "The Friar".

Pronto. Missão cumprida.

Eu e Chico nos encontrávamos com uma certa regularidade (não muita, mas alguma) e falávamos muito de projetos e mais projetos. O homem era compulsivo.

Corta. Estamos no Rio, anos depois. Eu estava - literalmente numa tremenda depressão quando recebo uma ligação dele pro meu quarto de hotel: "to mandando um carro te pegar ai, vem jantar aqui". Era o Chico "paizão" querendo retribuir. Veio um Monza velho, caindo aos pedaços com um motorista. Pegamos um engarrafamento daqueles surreais e pensei na roubada.

Isso já foi em 2000 e ele já estava casado com outra e a mansão era no final do Recreio dos Bandeirantes. Mostrou-me a casa com orgulho, cada canto, onde pintava, onde escrevia, mas, infelizmente a comida estava...deixa pra la. Ninguém jantou mesmo, nem ele.

Como na época eu tinha um programa de bate papos no UOL, resolvi voltar no dia seguinte pra filmar uma conversa informal que acabou ficando seria (http://geraldthomas.net/T-Chico-Anisio.html)

E era um tal de receber emails dele "o armazém do Francisco". "estou fechando o Armazém, volto mais tarde." Eram, sem exagero, uns 20 desses por dia, com conteúdo grande.

Em 2003 quando (de novo no Rio), eu fui preso por mostrar a bunda pra platéia de estréia de Tristão e Isolda no Municipal, o Chico foi o primeiro a ir no meu hotel em Ipanema, se anunciar na recepção e subir pra me acalmar.

Eu, debaixo dos cobertores tremendo por ter feito o que fiz e sabendo do processo que ainda estava por vir, Chico sentou-se do meu lado, segurou a minha mão e disse: "O professor Raymundo aqui vai dar um jeito, não se preocupe". E do quarto mesmo, começou a ligar pra advogados, desembagadores, ministros da justiça em Brasília, etc.

Percebi, sem querer, que estávamos numa cena do The Friar, de sua autoria: é quando um seminarista comete uma heresia e recebe a visita de um bispo que o reprime severamente mas, por trás das portas, faz tudo pra promove-lo.

Não posso deixar de registrar que Chico Anysio, assim como muitos outros comediantes brasileiros são seres fantásticos e universais. E mesmo que so se reconheça (num primeiro momento) a estética fajuta e os berros da era do radio, por trás dessa falsa fachada, existe um ser profundo, triste e comovente. Assim como a própria mascara do teatro que ri enquanto chora e vice versa.


GERALD THOMAS é dramaturgo e diretor de teatro

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