Sebastião Edson Macedo*, JB Online
RIO - A famosa arca dos originais de Fernando Pessoa (cujo nascimento completa ontem 121 anos) não cessa de nos surpreender. Depois das investigações de Teresa Rita Lopes, que contaram mais de 70 heterônimos no espólio do poeta (Pessoa por conhecer. Lisboa: Ed. Estampa, 1990), agora foi a vez de Manuela Parreira da Silva e equipe trazerem à tona mais 123 poemas inéditos que Pessoa escreveu assinando com seu próprio nome. Esses poemas estão coligidos no terceiro e último volume de Fernando Pessoa: poesia, compreendendo a produção lírica de 1931 até sua morte, em 1935. Esta recolha foi editada em Portugal em 2005 (Assírio&Alvim) e lançada este ano no Brasil. O volume apresenta, portanto, a poesia não-heteronímica de Pessoa, ou seja, a poesia ortônima, do poeta “ele-mesmo”, escrita em português (detalhe que deve ressaltar o fato de que Pessoa escrevia muito em inglês e algumas vezes em francês), além de trazer poemas não-datados, a maioria dos quais inéditos.
O livro é um dos vários modos de constatar o quanto os últimos cinco anos da atividade literária de Pessoa representam um momento de intensificação de seu fôlego criacional. Nesse período, o poeta retoma e se deixa absorver profundamente pela escritura de uma prosa semi-autobiográfica: o intrigante Livro do desassossego; dá acabamento formal a seu único livro (em português) publicado em vida, Mensagem; escreve a Adolfo Casais-Monteiro a mítica “Carta sobre a gênese dos heterônimos”; e compõe o verso-chave da modernidade literária no século 20: “O poeta é um fingidor”, do poema “Autopsicografia”, presente nesta recolha. Esses sinais de amplitude e vigor criativos repontam na diversidade e no rigor desse terceiro volume da poesia ortônima, conferindo-lhe particular interesse.
As 600 páginas do livro estão constituídas de mais de 750 poemas, anotados minuciosamente, além de um esclarecedor posfácio dos editores, que discute questões ecdóticas, de seleção e fixação dos textos, bem como as escolhas de teor organizacional. Os volumes anteriores cobrem os períodos de 1902-1917 e 1918-1930, respectivamente.
Acredito, entretanto, que o volume de 1930-1935 poderá vir a ser o mais instigante, não só pelos inéditos que traz, mas por coroar com solidez a heterogeneidade da dicção de Fernando Pessoa escrevendo em sua própria voz. Esta pronunciada heterogeneidade, por si mesma, já problematiza uma recorrente tendência da crítica, de abordar o perfil ortonímico de Pessoa de modo uniforme, a ponto de ter sido possível deslocar, quase sem resistência, o estatuto do poeta ele-mesmo para um lugar estável no palco do teatro heteronímico. Assim, Pessoa logrou ser endossado como “mais um outro” de si próprio, mais um heterônimo no seu “drama em gente”, abrindo um abismo sem precedentes para o problema da subjetividade moderna. No entanto, é neste volume que se pode verificar a audácia do poeta ortônimo em realizar um raríssimo trânsito entre o fingimento e o testemunho, justo quando expõe frontalmente dados de sua biografia civil, como sua sensível e efetiva amizade com o poeta Mário de Sá-Carneiro no poema “Sá-Carneiro” , e seu pungente memorialismo que abre e conduz o ciclo “Praça da Figueira” em um tom documentalmente pragmático, declarando ser o dia de Santo Antônio a data do seu aniversário. O leitor atento aos jogos pessoanos não deixará de se inquietar com um rosto menos abismal que está, aí, em poemas como esses, a mostrar-se.
Seja como for, a poesia de Pessoa ele-mesmo parece perspectivar, num único arco, o drama do poeta espreitando o drama da obra espreitando a subjetividade que pudesse ser própria do poeta. Seu fingimento, portanto, não deixará jamais de se tecer com um profundo testemunho de seu tempo, de sua personalidade e de sua vida, inclusive aquela que desejava visceralmente, sabemos, um acordo mais íntimo com o mundo; e não só com suas verdades, mas com as verdades mesmas dos homens seus irmãos, os “pobres diabos velhos”.
Uma das características mais curiosas da tradição literária é, sem dúvida, sua vívida contemporaneidade. É possível mesmo afirmar que certas obras tornam-se lapidares para uma cultura não apenas porque apreendem o espírito de seu tempo, mas porque subvertem justamente o caráter histórico que lhes contextualiza, fixando, desse modo, traços extemporâneos do humano recorrentes em épocas entre si muito diversas. A obra de Fernando Pessoa é um magno exemplo disto. Inscrita na convulsão da modernidade literária portuguesa, sua expressividade lírica e envergadura dramática fundaram bases incontornáveis para o longo devir estético do século 20 e, diga-se, para além da lusofonia. Não é de surpreender tanto, pois, que os poemas pessoanos sustentem hoje seu fôlego com a mesma vitalidade que soprava os desassossegos e as pungências dos corações humanos, décadas atrás, em tempos, como o nosso, de semelhante fragmentação subjetiva e declínio humanístico-civilizacional.
*Poeta, mestre em literatura portuguesa e professor.
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